Quem nunca, em uma tarde de ócio
ensolarada, ou mesmo chuvosa, decidiu ir ao cinema para matar o tempo? Quem,
depois de um dia de trabalho estressante, já não resolveu “pegar uma sessão”
antes de enfrentar a viagem de volta pra casa? Quem nunca fez da dupla
cineminha + jantar em companhia daquela pessoa especial o seu programa
predileto de fim de semana? E quem, ao conhecer alguém novo, que acabaria por se
revelar especial com o tempo, não marcou o primeiro encontro no cinema, onde o
filme em cartaz era o que menos importava, pois tudo que queria era ter a
chance de trocar o primeiro beijo na sala escura? Não deve existir pessoa no
mundo que não tenha boas e más lembranças de uma sessão de cinema. Talvez não
seja exagero afirmar que o cinema faz parte da vida e da memória de todo
indivíduo nascido a partir de meados do século passado.
As primeiras sessões de cinema
são lembranças que não se apagam da memória de nenhuma criança. Atravessar as
cortinas e penetrar na sala escura, vindo da claridade da rua, era como
penetrar em um mundo mágico, onde coisas maravilhosas estavam por acontecer. O
ambiente escuro e silencioso era perfeito para que a nossa atenção ficasse toda
voltada para a tela gigantesca. E, durante aproximadamente duas horas esquecíamos
o mundo lá fora concentrados apenas na luz que, vindo do fundo da sala, passava
por sobre as nossas cabeças para projetar o filme à nossa frente. E, no fim do
filme, o acender das luzes, o abrir das portas que nos permitiam voltar a ter
contato com o mundo exterior, mostrando todo o movimento e barulho da rua, era como
se acordássemos de um sono, para voltarmos a seguir nossa rotina. Experiência
marcante por ser tão diferente de assistir um filme na tv, na sala de casa. Essa
era a rotina: a sala de casa, clara e barulhenta, o filme que se materializava
dentro da pequena tela da televisão. Enquanto a ida ao cinema era a quebra da
rotina. Evento extraordinário. Crescemos, as telas diminuem de tamanho, compreendemos
racionalmente a dinâmica da projeção que faz o filme “voar” sobre as nossas
cabeças, as experiências cinematográficas (boas e ruins) se multiplicam, mas
essas primeiras impressões não se apagam. E são elas justamente, creio eu, as
responsáveis pela criação de legiões de cinéfilos.
Fachada do Cinema Carioca - Tijuca, RJ
Desde a década de 1940 os cinemas eram, além de tudo, marcos da
nossa paisagem urbana. Construções imponentes que ajudaram a popularizar a art déco no Brasil, bastava olhá-las
para saber que eram cinemas. As antessalas com grandes sofás confortáveis onde
esperávamos o início da sessão, escadarias de mármore que levavam aos balcões,
grandes lustres e relógios que lembravam estações de trem europeias, além dos
imprescindíveis cartazes de filmes que anunciavam as atrações que estavam por
vir. Os cinemas destoavam dos outros edifícios comerciais pelo requinte e
detalhamento da sua arquitetura sem que isso significasse tratar-se de um
divertimento de elite. Pelo contrário, se não estou enganado o cinema chegou a
se transformar, em meados do século XX, o divertimento mais popular do Brasil. A
ponto de se construírem grandes concentrações de cinemas em determinadas
regiões da cidade. No Rio, a Cinelândia ganhou o nome que mantém até hoje
justamente por isso. A Praça Saens Peña, na Tijuca, onde assisti as minhas
primeiras sessões, era outra área de grande concentração de cinemas. Eles não
faziam concorrência uns aos outros. Muito pelo contrário. O público podia até
ter a sua sala de cinema preferida (a minha era o Carioca), mas não deixava de
frequentar as outras desde que estivessem passando filmes do seu interesse.
Foyer do Cinema Carioca - Tijuca, RJ
Mas, na última década do século passado, a
concorrência do videocassete fez esvaziar as grandes salas de quinhentos
lugares. O faturamento começou a não cobrir a despesa da sua manutenção.
Primeiro fecharam-se os balcões. Depois, dividiram-se as salas em duas, três a
até mais, às vezes. Para tentar multiplicar o público multiplicando a oferta.
Alguns cinemas de rua conseguiram uma sobrevida com essa estratégia. Mas, logo começaram a aparecer os cinemas de shopping, que deram o golpe de
misericórdia nos antigos cinemas de rua. Foi irresistível para o público a
atração de um local onde, além de assistir o seu filme, você ainda podia
estacionar o seu carro e fazer o seu lanche pré ou pós-sessão sem se preocupar
com a segurança. Essa grande (e justificada) paranoia contemporânea dos grandes
centros. E, assim, a sessão de cinema e o jantar com aquela pessoa
especial podiam ser feitos praticamente no mesmo lugar. Mesmo que isso custasse um pouco
mais caro. Ou que a tela fosse um pouco menor e o som vazasse de uma sala para
a sua vizinha. Verdade seja dita, esses problemas técnicos foram sendo
consertados com o tempo. E hoje os cinemas de shopping têm poltronas bem mais
confortáveis do que as antigas poltronas dos cinemas de rua. De qualquer modo, toda essa transformação modificou bastante a
experiência de uma ida ao cinema. Mas quem está preocupado com isso em
uma sociedade cada dia mais pragmática e menos atenta para o mundo à sua
volta?
O fato é que os outrora elegantes
cinemas se tornaram “elefantes brancos”. E muitos fecharam definitivamente. Na
Praça Saens Peña fecharam todos os sete cinemas de rua que existiam. Alguns
espaços viraram igrejas evangélicas, que se aproveitaram da estrutura
arquitetônica das salas de projeção para fazerem seus cultos. Outros viraram
outros tipos de negócio, como farmácias e, até mesmo, lojas de departamento.
Esses não tiveram tanta “sorte” quanto os anteriores e tiveram toda a sua
arquitetura modificada (para não dizer destruída). Os mais desafortunados foram
ao chão para dar lugar a arranha-céus. Ou para dar lugar a nada.
Estacionamentos. Vazios urbanos. Terrenos com que se especular. Muito dirão que
é melhor ter qualquer coisa funcionando naquele espaço que um dia foi um cinema
do que mantê-lo fechado. Poluição visual, dirão outros. O que essas pessoas não
percebem é que cada cinema que fecha, que desaparece do espaço urbano sem
deixar vestígios para dar lugar a mais um prédio ou um mais estacionamento, leva junto um
parte da memória da cidade. Que é também a memória dos seus habitantes. Deixa
órfãos os milhares de pessoas que ali viveram experiências marcantes. Memórias
revividas toda vez que passavam na porta daquele cinema. Se a porta não existe
mais, as memórias também desaparecem. Questão de tempo para que nossas
lembranças comecem a falhar se não encontram no espaço lugares de memória onde
se materializem.
Cinemas são os exemplos mais
expressivos da forma como concebo o patrimônio cultural. Mais do que monumentos
ou “edifícios históricos”. Nos cinemas está materializada a história da
comunidade que circula no seu entorno. Mesmo que parte dessa comunidade nunca o
tenha frequentado. Cinema é marco físico, ponto de referência. E deixar um
cinema morrer é deixar morrer parte da história da cidade. Por isso, cabe àqueles
que se (pre)ocupam com a preservação da memória das cidades preservar os
cinemas que ainda restam. Lutar para que eles mantenham o seu uso cultural. Mesmo
passem a existir duas ou três salas onde antigamente havia apenas uma, mesmo
que o cinema tenha que dividir o seu espaço com uma livraria e um café (tanto
melhor), mesmo que não haja mais os grandes e confortáveis sofás ou os lustres e
relógios art decó. Se as paredes
estiverem de pé, e as portas abertas ao público, essas memórias não se perderão.