Pesquisar este blog

segunda-feira, 29 de abril de 2013

REFLEXÕES SOBRE A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL II


Na semana passada, entre os dias 23 e 25, participei do III Seminário “Olhar sobre o que é nosso”, promovido pelo Departamento de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura (que por aqui se chama Fundação Cultural Alfredo Ferreira Laje – FUNALFA) da Prefeitura de Juiz de Fora. Como meus poucos, porém inteligentes, leitores já devem ter percebido, o Seminário se propunha a discutir temas relacionados à preservação do patrimônio cultural em geral, e do patrimônio de Juiz de Fora, em particular. O tema dessa terceira edição versava sobre “As transformações da cidade e seus bens integrados”.
Na programação do Seminário, o primeiro dia teria três mesas dedicadas à discussão da intervenção em núcleos históricos (que eu prefiro denominar, de uma forma mais geral, de núcleos urbanos uma vez que, pela perspectiva do historiador todo núcleo urbano é histórico). Todas as três inteiramente compostas por arquitetos. O que me causou certa estranheza. Talvez por ter feito a minha especialização em Patrimônio Cultural em um ambiente que tinha a multidisciplinaridade por fundamento. Na minha turma do Programa de Especialização em Patrimônio do IPHAN/UNESCO (segunda turma, 2006) tínhamos desde designers até jornalistas, passando por antropólogos e, até mesmo, arquitetos! No PEP aprendi que patrimônio cultural não é (ou não deve ser) uma área de atuação exclusiva de arquitetos, e que a multiplicidade de olhares enriquece a preservação do patrimônio. Infelizmente, esse entendimento ainda parece estar engatinhando no dia a dia da preservação do patrimônio pelos municípios do Brasil afora. Os outros dois dias do Seminário foram reservados a mesas sobre os tais “bens integrados”. No segundo dia, duas palestras sobre arte tumular, e no último dia, duas palestras a respeito de vitrais.
Como não é minha intenção aqui fazer uma resenha do Seminário inteiro, gostaria de destacar nesse texto, entre todas as palestras interessantes que assisti ao longo desses três dias, a palestra inaugural do Seminário: “Intervenções em núcleos históricos”, proferida pelo professor doutor Andrey Rosenthal Schlee, Diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN. O professor Andrey procurou ressaltar como as atuais intervenções realizadas pelo IPHAN em núcleos históricos não se restringem ao tombamento e restauração de bens isolados, fruto certamente do entendimento de que a preservação do patrimônio cultural depende igualmente de uma delimitação e tratamento cuidadoso do seu entorno. Dessa forma, tais intervenções buscam sempre, pela restauração e refuncionalização do bem histórico/cultural, “requalificar” toda a região do seu entorno. Nesse processo de criação de “áreas qualificadas” ao redor do bem tombado, há sempre a preocupação de recuperar o simbolismo de marcos físicos que fazem parte da história da constituição desse núcleos urbanos (em boa parte das vezes, mas nem sempre, tais marcos são o próprio bem a ser preservado pelo IPHAN). Como, por exemplo, a ligação da cidade com o seu porto, ou com a estação da via férrea que foram os seus pontos de origem. É muito comum que a dinâmica de seu desenvolvimento faça com que a cidade vire as costas para o seu “marco zero”, e tais relações se percam. Criando ou recuperando áreas de convívio (como praças, parques, deques, etc.), essas intervenções ressaltam a relação existente entre a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de vida dos morados desses núcleos urbanos. Ao mesmo tempo, pela criação de áreas turísticas, a valorização da memória local aparece também, através da intervenção para a preservação do patrimônio cultural, como uma estratégia para o desenvolvimento local.
Em alguma medida, essa forma de intervenção em núcleos urbanos se contrapõe ao argumento daqueles que negam o papel do tombamento como instrumento para tratar de problemas urbanísticos relacionados à qualidade de vida nas cidades, tais como o adensamento urbano ou a mobilidade urbana. Esse tipo de intervenção mostra que, se por um lado, o tombamento não trata diretamente desses problemas; por outro lado, ele pode se configurar como ponto de partida para que eles sejam abordados e resolvidos. O que é importante sempre ter em mente é que na medida mesma em que as políticas de preservação do patrimônio cultural material atuam no espaço urbano, que é onde se encontram esses bens (na esmagadora parte das vezes), elas tem necessariamente uma dimensão de política urbanística, influenciando a dinâmica social do entorno dos bens preservados e da cidade como um todo.
Infelizmente, no final da sua palestra, o professor Andrey pisou na bola ao responder a uma pergunta do público sobre a sua opinião a respeito das intervenções que atualmente vem sendo feitas no Rio de Janeiro. O palestrante, então, elogiou o prefeito Eduardo Paes como “um grande prefeito”, que está fazendo “obras memoráveis” na cidade, comparando-o mesmo a Francisco Pereira Passos, prefeito que remodelou o Rio no começo do século XX (essa comparação até faz algum sentido, mas não pelos motivos que o palestrante ressaltou). Na mesma resposta, ainda reduziu as críticas às obras promovidas pela Prefeitura à mera oposição política ao prefeito. Como se essas críticas, mesmo quando vindas de pessoas envolvidas com a preservação do patrimônio, obedecessem apenas a interesses do jogo político, totalmente alheios à discussão do patrimônio cultural. O que, a meu ver, é uma forma muito reducionista de se enxergar o que tem sido feito na cidade. Nenhuma palavra sobre a privatização de espaços públicos, sobre as discutíveis parcerias público-privadas onde o interesse privado sobressai ao interesse público, sobre o desperdício de dinheiro público, sobre o desrespeito com áreas já tombadas e com a própria história da cidade, etc. Depois de discorrer tanto, e tão bem, sobre a relação existente entre a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de vida dos cidadãos, essa resposta do professor Andrey me deixou a impressão de que para ele, ao fim e ao cabo, apenas o que conta na política de preservação do patrimônio cultural são os critérios técnicos. Como se não houvesse muita disputa política envolvida em qualquer intervenção em área urbana. Afinal de contas, o termo “política” vem de “pólis”, não é? E, com “disputa política” não estou me referindo aqui à práxis política rasteira que estamos acostumados a ver a nossa classe política praticar diariamente. Estou me referindo à luta pelo direito a um lugar no espaço urbano frente aos outros agentes que também atuam no mesmo espaço. Em particular, uma luta contra a especulação imobiliária que, diga-se de passagem tem um braço político bastante forte (e aqui sim, eu me refiro à política rasteira, da troca de favores). Uma luta por visibilidade que, no seu extremo, significa uma luta por cidadania. Porque, ao fim e ao cabo, é disso que trata a preservação do patrimônio cultural.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

OS TRANSPORTES PÚBLICOS E A PRIVATIZAÇÃO

A polêmica a respeito da privatização ou não do Complexo Desportivo do Maracanã, que eu abordei nesse post aqui, trouxe a tona o debate a respeito de outras privatizações feitas no final dos anos 90 e começo dos anos 2000: a privatização dos meios de transporte no Rio de Janeiro. O carioca usuário dos serviços dos trens, metrôs e barcas enfrenta hoje um verdadeiro caos nesses transportes, privatizados há aproximadamente 15 anos sob o pretexto de que o Estado não conseguia prestar um serviço satisfatório. A promessa era a de que, privatizados, trem, metrô e barcas passariam a prestar um serviço de excelência, pois a iniciativa privada, teoricamente, tem a verba que falta ao Estado para investir na melhoria do sistema. Mas parece que só teoricamente. Porque no dia 13 de abril, o jornal O Dia, que é voltado para o público de classe média baixa, usuários do transporte público, trouxe como reportagem de capa uma matéria sobre o caos no transporte ferroviário do Rio. 


Partindo dessa reportagem, o blog Cidades Possíveis perguntou: 15 anos não é tempo suficiente para se melhorar o sistema ferroviário?  Infelizmente, essa situação não é exclusividade da Supervia. Reforço, então, o coro: depois de 15 anos o carioca não deveria estar usufruindo de um transporte “de primeiro mundo”? Aliás, para fazer jus à tarifa “de primeiro mundo” que ele paga (que nós pagamos).

Curiosamente, muitas pessoas ainda hoje veem a privatização como solução para os problemas de mau funcionamento dos serviços públicos. Infelizmente, essas pessoas não percebem que esse mal funcionamento é fruto de um processo de sucateamento dos serviços públicos, levado a cabo durante décadas por governantes que estavam mais preocupados com interesses particulares do que com o interesse público. Com os serviços públicos sucateados é fácil construir a ideia de que o serviço particular é sempre necessariamente melhor do que o público, e conseguir com que boa parte da população brasileira apoie qualquer iniciativa de privatização desses mesmos serviços. Mesmo de serviços essenciais, direitos do cidadão, e que deveriam ser garantidos pelo Estado, tais como a saúde, a educação e o transporte. Essa defesa da privatização é hoje alimentada pela onda neoconservadora que se espalha pelo país disseminando um ideário político, econômico e social liberal que prega o Estado mínimo. Ou pior, Estado nenhum. Pois acredita que em todas as áreas a livre concorrência sempre é capaz de regular o mercado, beneficiando os usuários. Eu tenho a impressão de que nem o próprio Adam Smith acreditava verdadeiramente nessa ideia. De todo modo, consigo entender perfeitamente a crítica à nossa tradição estatista e a necessidade de diminuição das áreas de atuação do Estado. Durante muito tempo o Estado brasileiro monopolizou serviços que não podem ser considerados como de primeira necessidade, e onde a livre concorrência (se isso existisse de verdade) faria um grande bem. Como os serviços de telefonia, de informática, ou de correios, por exemplo. O grande número de reclamações contra as empresas de telefonia que atualmente se registram no Procon ou em sites como o Reclame Aqui, porém, nos mostra que alguma coisa está não está certa nesses processos de privatização. 

Acompanhei de perto, como usuário, o processo de privatização do metrô e das barcas. O metro foi privatizado porque, dizia-se, dava prejuízo para o Estado. Apesar de ser motivo de orgulho para a população carioca. Enquanto ainda era um serviço público, o metro do Rio era um meio transporte seguro, pontual e confortável. Na verdade, o processo de privatização do metro transferiu para o controle da iniciativa privada apenas a operação dos trens (leia-se aqui, a cobrança das passagens). A manutenção de trens e da linha, assim como a aquisição de novas composições continuou (e continua) a cargo do Estado. Ou seja, a parte lucrativa ficou na mão dos empresários, enquanto a parte mais cara da operação do sistema continuou sob a responsabilidade do Estado. Foge à minha capacidade de compreensão por qual lógica se livrar da parte lucrativa da operação faria com que o metro parasse de dar prejuízo ao Estado. Para deixar de dar prejuízo e passar a dar lucro, a primeira medida tomada pela concessionária foi uma demissão em massa de funcionários. Por outro lado, os investimentos feitos pela concessionária concentraram-se quase completamente na identidade visual do serviço. Uma reforma em algumas estações dotou-as de escadas rolantes. Mas não em todas, e foi só isso. A questão é que, nesses 15 anos de operação privatizada a qualidade do serviço prestado pelo metrô caiu em proporção inversa à alta do preço da passagem. Hoje temos o metro mais caro do país. A página Metrô que o Rio precisa, do Facebook, vem postando diariamente as fotos que mostram a situação de caos no transporte metroviário.  



O processo de privatização do serviço de barcas que liga o Rio de Janeiro a Niterói, Paquetá e Ilha do Governador foi ainda mais escandaloso. Em primeiro lugar porque integravam o consórcio que venceu a disputa para assumir o controle do sistema, nada mais nada menos do que uma empresa de ônibus que já fazia o transporte rodoviário de passageiros entre Rio e Niterói e uma empresa que já fazia parte do grupo que tinha assumido a operação da ponte Rio-Niterói (privatizada 4 anos antes das barcas). Dessa forma, essas duas empresas passaram a controlar o lucrativo serviço de transporte marítimo e rodoviário de passageiros entre as duas principais cidades do Estado. Em suma, uma privatização não para estimular a livre concorrência mas para acabar com ela e gerar um monopólio. Deixando o usuário sem opção. Um post no blog do jornalista Luís Nassif expõe em detalhes o resultado desse monopólio, e nos passa a impressão de que a concessionária tinha a intenção de beneficiar a travessia rodoviária da Baía da Guanabara e não o transporte marítimo. Ao longo desses 15 anos de concessão os investimentos no sistema também foram mínimos, e a concessionária deixou de cumprir com várias obrigações previstas no contrato de concessão.  Se, por um lado, ela “modernizou” os serviços na Estação da Praça XV (apenas aí, os outros continuaram iguais a antes, pelo que sei); por outro lado, o preço da passagem subiu vertiginosamente chegando ao cúmulo de sofrer um reajuste da ordem de 60% em 2012 (a travessia entre Rio e Niterói passou de R$2,80 para R$ 4,50). Assim como no caso do metrô, o serviço prestado pelas barcas foi se deteriorando ao longo desse tempo. O serviço prestado pela antiga Conerj podia não ser dos melhores, mas estava muito longe de se assemelhar da situação atual, quando na hora do rush a fila para entrar na estação da Praça XV chega até a Rua Primeiro de Março!! Se você que me lê não é morador do Rio, procure Praça XV e Rua Primeiro de Março no Google Maps e pasme. A situação precária do serviço oferecido hoje pela CCR Barcas foi recentemente motivo de uma manifestação deusuários indignados por ocasião da divulgação de mais um aumento de tarifa.



O resultado do caos nos transportes ferroviário e marítimo do Rio é uma maior procura pelo serviço dos ônibus e das vans. Hoje 70% do transporte de passageiros na Região Metropolitana do Rio é feito por ônibus. O que nos leva a concluir que deu certo a estratégia dos empresários de ônibus para eliminar a concorrência ao serviço que eles prestam. Um serviço que também vive à beira do caos, com ônibus velhos, sujos, inseguros e que não dão conta da demanda nos horários do rush. Um serviço que, sobretudo, tem um impacto direto na qualidade de vida do cidadão. Pois, na medida em que as cidades crescem e aumentam as distâncias e o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho ou entre a casa e o lazer, o problema da mobilidade urbana se torna crucial para a qualidade de vida dos seus habitantes. Levar 10 ou 20 minutos a menos no trajeto do trabalho para casa pode significar mais tempo para o lazer, para ficar com a família, para cuidar da educação dos filhos. Pode significar também menos procura aos hospitais, a psicólogos, a psiquiatras. Ninguém ignora que o transito é uma das maiores causas de stress da sociedade contemporânea. E que os transportes ferroviário e marítimo levam grande vantagem com relação ao modelo rodoviário porque não causam, e portanto não enfrentam, engarrafamentos. Porém, quando a cidade começa a se preparar para sediar os grandes eventos de 2014 e 2016 qual a grande inovação que a administração municipal apresenta para o sistema de transporte de passageiros na cidade? O BRT (Bus Rapid Transit). Que nada mais é do que um corredor exclusivo para... ônibus.

O que é preciso entender de uma vez por todas é que o transporte público deve ser considerado direito dos cidadãos e a sua prestação não pode ficar à mercê dos caprichos do mercado, ou pior, do interesse particular de meia dúzia de empresários, para quem o lucro sempre vem em primeiro lugar. Infelizmente a administração municipal e estadual do Rio parecem estar pensando justamente no sentido contrário. Privatiza-se o transporte público, que para dar lucro tem que funcionar no limite da sua lotação e com o mínimo de investimento, e obriga-se os cidadãos a enfrentarem filas e preços absurdos ou a comprarem um carro particular (aqueles que tem condições de fazer isso), e aumentar o fluxo de carros nas ruas. Aumentando os engarrafamentos, a poluição do ar e sonora e o stress. E, assim, todos saem ganhando: donos de empresas de ônibus, donos de concessionárias, donos de postos de gasolina, donos de planos de saúde, donos de hospitais... Só quem sai perdendo é o cidadão. Mas, pelo visto, o interesse do cidadão é o que menos importa nesse processo.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL


Acabei de ler recentemente dois livros sobre preservação do patrimônio cultural escritos por advogados que atuam na área. E essa leitura me passou a forte impressão de que essa área tem deixado de ser um campo de atuação privilegiado de arquitetos, como até bem recentemente se apresentava no Brasil, para se tornar um campo privilegiado de atuação de advogados. Quero deixar claro desde já que não sou contra a atuação de advogados na área da preservação do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Creio que essa área necessita cada vez mais de advogados que entendam da legislação referente ao assunto e que saibam atuar a favor da preservação do patrimônio. Sim, para atuar a favor! Porque atuando contra já tem muita gente. 


Desde o estabelecimento das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, o instituto do tombamento se vê às voltas em disputas jurídicas. Principalmente em conflito aberto com o direito de propriedade, uma vez que com o tombamento surge a chamada limitação administrativa da propriedade privada dos bens tutelados, como explicam Nilo Lima de Azevedo e Wilson Coury Jabour Júnior, no seu livro Reflexões e Olhares, sobre o estabelecimento da prática de preservação do patrimônio cultural em Juiz de Fora (MG). É verdade que uma parcela da culpa do estabelecimento dessa situação de conflito coube à forma autoritária como o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) conduzia os processos de tombamento nos primeiros anos da sua atuação, guiado pela urgência requerida pela “retórica da perda”. Os proprietários dos bens escolhidos para fazer parte do acervo do patrimônio cultural nacional eram apenas informados que o seu imóvel havia sido tombado pelo órgão e que, a partir de então, eles teriam que seguir uma série de restrições. A primeira reação desses proprietários, para quem a tutela do IPHAN feria o direito de propriedade sobre o seu bem, era instituir um advogado que os auxiliasse a recuperar o direito que eles acreditavam que o órgão os estava roubando. A ideia de que um bem particular podia exercer uma “função social” era totalmente nova no Brasil e, por isso mesmo, muito mal compreendida pelos proprietários. O SPHAN também não se incomodou, nos seus primeiros anos de atuação, com ações de educação patrimonial para esclarecer o que significava ser proprietário de um bem tombado. Estabeleceu-se, por isso, uma espécie de diálogos de surdos, onde um interlocutor não conseguia escutar as razões do outro.

Acontece que o transcorrer de oito décadas não foram suficientes para alterar essa situação e garantir a prevalência da valorização da dimensão social/coletiva de um imóvel sobre o paradigma liberal de propriedade ainda muito forte no Brasil. Ou, cada vez mais forte, na medida mesma em que a onda neoconservadora que nesse momento se espalha pelo país faz com se dissemine cada vez mais a adoção do ideário econômico/político/social liberal, onde o direito à propriedade privada reina absoluto como direito fundamental. E hoje em dia, ainda ou cada vez mais, os proprietários de bens que apresentem interesse cultural para preservação, principalmente os localizados em áreas urbanas valorizadas pela especulação imobiliária, fogem da possibilidade de tombamento da sua propriedade de todas as formas possíveis. E, a mais utilizada delas, é a instituição de um advogado para garantir o seu direito de propriedade. Por isso, volto a repetir, é muito importante que tenhamos profissionais advogando a favor da causa do patrimônio. 

O que me incomoda nessa situação é o fato de que, cada vez mais, as decisões em torno da preservação ou não de um bem cultural, tem sido guiadas não por debates a respeito da sua valorização artística ou histórica, como deveria ocorrer; mas antes por debates a respeito da legalidade das políticas de preservação. Os advogados instituídos pelas partes interessadas na não preservação dos bens contestam os processos de tombamento baseados em pareceres jurídicos a respeito da constitucionalidade das leis de proteção ou da competência legal das instâncias instituídas para deliberar a respeito das políticas de preservação. Esses mesmos advogados, por vezes, mostram um desconhecimento completo a respeito dos conceitos e discussões que embasam as práticas de preservação do patrimônio cultural. Para eles não importam as discussões sobre a natureza material ou imaterial do patrimônio, a valorização do seu conteúdo simbólico, a pertinência da sua preservação como elemento construtor de uma memória social e de uma identidade coletiva, etc. O que interessa a eles é encontrar as brechas nas leis que instituem as políticas de preservação do patrimônio para que eles possam questionar a legalidade do ato. De acordo com os cânones da sua prática profissional, advogados assumem posições apriorísticas nas disputas em que estão envolvidos. Desde o início da sua atuação nas contendas, eles escolhem um lado para defender. O lado do seu contratante, obviamente. De acordo com essa postura, e para fazer valer os seus honorários, eles não estão dispostos a ouvir os argumentos do lado contrário, a não ser para rebatê-los; e muito menos a mudar de lado, reconhecendo a razão do outro lado, se for o caso. O que não acrescenta em nada na discussão a respeito da preservação do patrimônio cultural. 

Mais uma vez, eu repito e faço questão de deixar claro: não sou contra a atuação de advogados no campo do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Acredito mesmo que a análise do patrimônio cultural como objeto jurídico é um campo de atuação muito fértil para advogados, como mostra o recém-publicado livro de Yussef Daibert Salomão de Campos sobre a legislação em torno do patrimônio cultural imaterial: A Percepção do Intangível. Porém, um pedido de tombamento (ou de qualquer outro tipo de preservação) deve ser aceito ou refutado por profissionais que conheçam o significado do conceito de patrimônio cultural, que estejam a par da história das práticas de preservação do patrimônio no Brasil e no mundo e de toda a trajetória das discussões em torno do assunto, que saibam debater os temas que hoje embasam e orientam essas práticas, tais como: a inadequação do uso das ideias de excepcionalidade e autenticidade (consagradas, porém ultrapassadas), a inclusão do conceito antropológico de cultura na atribuição de valor dos bens, a não separação ou hierarquização dos bens pela sua natureza (material ou imaterial), a importância da atribuição de valor ao bem pela comunidade que o cerca, etc. O profissional que pretende trabalhar na área da proteção do patrimônio cultural, ou mesmo aquele que pretende se colocar contra a proteção, deve dominar esses temas. Pouco importando qual seja a sua formação. Porque senão, estaremos sempre reproduzindo um diálogo de surdos.


terça-feira, 9 de abril de 2013

REABERTURA DO MUSEU DO TREM NO RIO DE JANEIRO

O IPHAN reabriu no dia 2 desse mês o Museu do Trem, no Rio de Janeiro, que estava fechado desde 2007. Para quem, como eu, é um entusiasta do transporte ferroviário e acha que o transporte de cargas e passageiros deveria voltar a ser feito sobre trilhos no Brasil, esse é um programa imperdível. O acervo conta com mais de mil itens, mas o seu ponto alto é com certeza a locomotiva Baroneza, de fabricação inglesa, movida a vapor e a primeira a trafegar na estrada de ferro que ligava o Rio de Janeiro a Petrópolis a partir do porto de Mauá, no "fundo" da Baía da Guanabara. Ferrovia pioneira no país, implantada em 1854 por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.


O horário de funcionamento está meio ingrato, por enquanto: de segunda à sexta, das 10 às 15 horas. Mas a entrada é franca. O Museu do Trem fica na Rua Arquias Cordeiro, 1046, no bairro do Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio. 


segunda-feira, 8 de abril de 2013

O MARACANÃ E A CIDADE


Grandes polêmicas tem envolvido as obras que estão sendo feitas para a Copa e as Olimpíadas no Rio de Janeiro (ou, pelo menos, que estão sendo feitas com esse pretexto). Uma das mais discutidas nesse momento é a que diz respeito ao processo de reforma e privatização do complexo desportivo do Maracanã. O público em geral tem se dividido entre opositores e defensores da privatização. Não vem ao caso discutir nesse texto se esses dois grupos correspondem exatamente aos opositores e defensores dos governos de Sérgio Cabral e Eduardo Paes. É uma discussão importante, mas na qual não pretendo entrar aqui. Até porque esse texto já está grande demais sem ela. E, desde já, me desculpo por isso. 


Os argumentos dos opositores é de que a privatização do Maracanã faz parte de um processo de elitização do espaço que começou nas reformas do Estádio para o Pan-Americano com o fechamento da geral, o aumento do preço dos ingressos, a construção de camarotes e a redução do número total de lugares daquele que já foi o maior estádio do mundo. Tudo justificado como exigências da FIFA para a modernização do Estádio. Sem querer negar a existência desse processo de elitização, devo admitir que algumas dessas exigências são até compreensíveis. Como é o caso da própria existência da Geral. Apesar de muito romantizada e de fazer parte da história e de todo o folclore que envolve os jogos no Maracanã, a Geral era um espaço que não garantia a segurança nem dos torcedores que lá estavam e nem dos jogadores que estavam em campo. Mas, quando foi construída, junto com o projeto original do Estádio, não havia as preocupações com segurança que há hoje. O seu desaparecimento, porém, se tornou símbolo desse processo de elitização do Maracanã. Que é, a meu ver, apenas mais um capítulo do processo de elitização do lazer na cidade do Rio de Janeiro e da cidade mesma como um todo, que vem marcando a administração do atual prefeito. Reeleito com 70% dos votos dos cariocas, não custa lembrar. O que deve significar que a maioria da população da cidade apoia esse processo de elitização, não se importa com ele ou, o que é mais provável, não percebe o que está acontecendo bem debaixo dos seus narizes.

Por outro lado, os argumentos daqueles que defendem a privatização do estádio é de que aqueles que a criticam são esquerdistas radicais contrários a qualquer privatização e inimigos do empresariado e da iniciativa privada; ou que não é dever do Estado gerir estádios de futebol. Com a segunda dessas afirmações eu concordo. A minha convicção é a de que o Estado deve garantir à população contribuinte, em primeiro lugar, os serviços básicos: saúde, educação, transporte e, também, lazer. E que, diante da eterna escassez de verbas porque passam Estados e municípios no Brasil, me parece um desperdício o Estado gastar uma parte da verba na manutenção de um Estádio do porte do Maracanã. Os motivos dessa escassez é outra discussão importante, mas que eu também não farei nesse texto. Não sei qual o total que o Estado gasta anualmente para gerir o Maracanã, mas sei que essa verba poderia ser melhor empregada em projetos esportivos que tenham um alcance e uma inclusão muito maior de cidadãos. Assim sendo, não vejo problema algum que todos os estádios de futebol do Brasil passem para a administração da iniciativa privada.

O Maraca nos áureos tempos de maior do mundo

PORÉM... e sempre há um porém, o Maracanã não é um estádio qualquer. E, assim não sendo, requer cuidados especiais no seu processo de privatização. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o Maracanã é um Patrimônio Cultural, tombado em nível federal (pelo IPHAN) e em nível municipal (pela Subprefeitura de Patrimônio Cultural da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde 2000. Não conheço as especificidades dos decretos de tombamento do Estádio, mas sei que essa dupla proteção certamente impõe uma série de restrições tanto ao seu uso quanto à alterações físicas no espaço construído. Restrições essas que, diga-se de passagem, já não estão sendo respeitadas na reforma pela qual passa atualmente o estádio. O fato é que, assim como acontece com o proprietário de qualquer outro imóvel tombado, o proprietário do Maracanã, seja o Estado ou seja um proprietário privado, não poderá (como já não pode) dispor do espaço do Maracanã a seu bel prazer, fazendo e desfazendo de acordo com o que lhe der na telha e desrespeitando a legislação que protege o imóvel. Nesse sentido, qualquer processo de privatização do Maracanã deve levar em consideração os projetos que o candidato a futuro proprietário tem para o Estádio, tendo em visa a sua preservação como Patrimônio Cultural.

Estádio de Atletismo Célio de Barros

Em segundo lugar, é importante ter em mente que o processo de privatização do Maracanã deverá levar em consideração não apenas o Estádio, mas todo o Complexo Desportivo do Maracanã. Que inclui a Pista de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare. Os dois espaços igualmente reformados para a realização do Pan Americano e utilizados para treinamento por centenas de atletas, inclusive por medalhistas olímpicos. Espaços onde, além disso, moradores das comunidades carentes das redondezas e um grande contingente de pessoas da terceira idade podem praticar a atividade física fundamental para a manutenção da sua saúde física e mental. Espaços públicos de lazer que contam com escolinhas de esportes de várias modalidades, onde milhares de moradores do Rio de Janeiro tiveram a oportunidade, assim como eu tive, de dar os seus primeiros passos na prática do esporte. E creio que não é preciso ressaltar aqui o importante papel que a prática de uma atividade esportiva tem na vida de uma criança ou de um pré-adolescente, afastando-o do sedentarismo e de outras atividades que podem ser nocivas à sua saúde. O processo de privatização do Maracanã que se apresenta nesse momento pretende destruir esses importantes equipamentos esportivos, deixando carente o enorme público hoje beneficiado por eles, pela mais simples falta de alternativas para que esse público continue praticando o seu trabalho ou seu lazer.

Parque Aquático Júlio Delamare

Anexos ao Complexo do Maracanã, e igualmente ameaçados pelo processo de privatização que se desenrola, enecontram-se também dois equipamentos culturais: uma escola municipal e um palacete que deveria ser um Museu, mas que estava abandonado pelo poder público há décadas. A Escola Municipal Freidenreich, que no momento mesmo em que escrevo esse texto já deve ter ido ao chão, era considerada a quarta melhor do Estado avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do Inep/ME. E, apesar do prefeito ter afirmado, em reportagem de O Globo de dezembro último, que "o que faz uma escola não é um prédio, mas a dedicação de professores e alunos", ele pode perguntar para qualquer pedagogo e todos lhe dirão que o ambiente físico da escola é sim muito importante no processo de ensino/aprendizagem. Experimente tentar implantar um ensino de excelência em uma escola com instalações precárias. Claro que sempre há os professores que fazem milagres com os poucos recursos que o Estado lhes dá, mas essas são as exceções e não a regra. Infelizmente, o prefeito parece não compreender muito de pedagogia. Mas, também, o que esperar de um prefeito que coloca uma Administradora à frente da Secretaria Municipal de Educação? 


A disputa em torno do Palacete construído ainda no século XIX, antiga propriedade de um comendador do Império, que resolveu construir a sua residência nas imediações do Palácio de São Cristóvão para ficar próximo ao Imperador, foi mais divulgada porque mais indignante. Consta que, ainda na década de 1860, o Palacete teria sido adquirido por Luis Augusto Maria Eudes, Duque de Saxe e genro de D. Pedro II, que doou o espaço à Monarquia para a construção de um centro de investigação da cultura indígena. Em 1910, o Marechal Rondon criou, no mesmo imóvel, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que viria a dar origen à FUNAI. Entre 1953 e 1977, funcionou ali o Museu do Índio, que nessa última data foi transferido para a sua localização atual no bairro de Botafogo (um local onde os índios são proibidos de entrar). A partir de então o Palacete centenário foi abandonado pelo poder público a ponto de chegar quase às ruínas. Inclusive pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural, que nunca conseguiram chegar a um acordo sobre se o imóvel merecia um tombamento ou não. Talvez por questões técnicas ou de atribuição de valor histórico/artístico, talvez pelo próprio estado de degradação em que se encontra o imóvel, ou mesmo por questões burocráticas. De lá prá cá, vários projetos de ocupação do local foram aventados, mas nenhum foi levado adiante. Lembro especialmente de um, mais recente, que era a compra do espaço pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujo campus principal fica instalado a poucos metros dali, para lá instalar a sua Faculdade de Artes. Na época, início dos anos 2000, cheguei a ajudar uma amiga arquiteta no seu projeto de reforma do Palacete para a instalação da Faculdade.

Infelizmente, esses projetos não saíram do papel e o imóvel continuou abandonado, sendo ocupado por índios que reconheciam naquele espaço um local significativo para a preservação da sua cultura. As autoridades só voltaram a olhar para o local quando começou o processo de reforma/privatização do Complexo do Maracanã, e a primeira orientação do governo do Estado não foi reformá-lo e reabri-lo ao público, como Museu do Índio ou com outra função qualquer, mas por o Palacete abaixo para a construção de um... estacionamento (!!!). O mais incrível foi ler nas redes sociais pessoas apoiando a medida e afirmando que o estacionamento iria beneficiar mais gente do que o Museu. Ao ler esse tipo de comentário, fico me perguntando em que outro país do mundo as pessoas acreditam que um estacionamento é mais necessário do que um Museu. É importante ressaltar que é muito comum no Brasil a utilização dessa estratégia por parte do Estado: deixar um imóvel indesejado ruir para poder destruí-lo com a aprovação da opinião pública, que prefere ver um espaço vazio do que uma ruína e entulhos. Resumindo a história, que foi por demais divulgada nos meios de comunicação, depois de muitas manifestações contrárias à demolição do prédio, o governador foi obrigado a recuar da sua intenção inicial e admitiu que o imóvel ficasse no lugar onde está desde meados do século XIX. Porém, apenas o imóvel e não os índios. Ele admitiu finalmente dar um uso de natureza cultural para o espaço, como Museu, mas da Copa e não do Índio. No mês passado, a história teve um desfecho autoritário, com a invasão do prédio pela Polícia Militar para a retirada violenta dos seus moradores.  O Palacete, de construção anterior ao Maracanã ou mesmo ao Derby Club que existia no local antes do Estádio, merecia ao menos o respeito e a preferência de quem chegou primeiro, e conta a história não apenas da ocupação daquele pedaço da cidade (o que já seria muita coisa), mas também a história dos esforços de reconhecimento e preservação da cultura indígena no Brasil.



 O Palacete é hoje o último marco da primitiva ocupação daquele espaço.

Por último, mas não menos importante, qualquer processo de privatização do Maracanã precisa levar em consideração o montante de dinheiro público que já foi gasto na atual reforma do Estádio. Segundo reportagem do Portal UOL, a reforma do Maracanã estava orçada, até fevereiro último, em cerca de R$ 1 bilhão!!!! Não estou informado se, de lá prá cá, já houve outro reajuste do orçamento. Mas é bem provável que sim. Segundo a mesma reportagem, de acordo com o edital de concessão do Complexo Desportivo, publicado naquele mesmo mês pelo governo do Estado, a empresa vencedora terá a concessão do estádio por 35 anos, sendo obrigada a repassar ao Estado R$ 4,5 milhões por ano ao longo desse tempo. Fazendo uma complexa conta de somar, isso dá um total de R$ 153 milhões. O que significa 15% do total que o poder público está gastando com a reforma. Sim, você entendeu bem. A empresa vencedora vai ganhar o direito de explorar o espaço do Maracanã (que não é qualquer espaço) por 35 anos, com a obrigação de devolver ao Estado apenas 15% daquilo que ele gastou com a reforma, e pagando em 35 prestações. Ao contrário do que boa parte dos brasileiros acredita, dinheiro público não é dinheiro de ninguém. É o MEU dinheiro, o SEU dinheiro! É o nosso dinheiro que o governo do Estado está gastando nessa reforma, sem exigir o retorno do empresário que vai explorar o espaço pelos próximos 35 anos.

Para concluir eu queria reafirmar o que eu disse no começo desse texto: eu não sou contrário à privatização do Maracanã. Mas sou contrário à privatização do nosso direito ao lazer e ao esporte, à educação e à cultura. Sou contrário à privatização do espaço público e da cidade. E, sobretudo, sou contrário à privatização do dinheiro que eu pago em impostos todo santo dia. Por isso, sou contrário a este processo de privatização que ora se apresenta para o Maracanã. Privatize-se o estádio, desde que se encontre um interessado que se comprometa a respeitar, a história do estádio e da cidade, respeitando-o como Patrimônio Cultural tombado que é; a preservar em funcionamento os espaços públicos de lazer anexos a ele (Estádio de Atletismo Célio de Barros e Parque Aquático Júlio Delamare); a preservar o prédio da Escola Municipal Friedenreich e o Palacete-Museu, como importantes equipamentos culturais que são (no caso da primeira) e que podem voltar a ser (no caso do segundo); que se comprometa a devolver ao Estado, pelo menos, metade do que ele tem gasto em dinheiro público nessa reforma. Ache um interessado que assuma esses compromissos e demonstre, com isso, respeito pela história da cidade e pela sua população e mostre para ele que, mesmo assim, ele ainda pode ganhar muito dinheiro explorando o Maracanã por 35 anos. E, se isso não for possível que mantenha público o que sempre foi patrimônio público. Patrimônio não de um empresário particular, mas de todos os cariocas.