Pesquisar este blog

terça-feira, 1 de outubro de 2013

CINEMAS, LUGARES DE MEMÓRIA


Quem nunca, em uma tarde de ócio ensolarada, ou mesmo chuvosa, decidiu ir ao cinema para matar o tempo? Quem, depois de um dia de trabalho estressante, já não resolveu “pegar uma sessão” antes de enfrentar a viagem de volta pra casa? Quem nunca fez da dupla cineminha + jantar em companhia daquela pessoa especial o seu programa predileto de fim de semana? E quem, ao conhecer alguém novo, que acabaria por se revelar especial com o tempo, não marcou o primeiro encontro no cinema, onde o filme em cartaz era o que menos importava, pois tudo que queria era ter a chance de trocar o primeiro beijo na sala escura? Não deve existir pessoa no mundo que não tenha boas e más lembranças de uma sessão de cinema. Talvez não seja exagero afirmar que o cinema faz parte da vida e da memória de todo indivíduo nascido a partir de meados do século passado.

As primeiras sessões de cinema são lembranças que não se apagam da memória de nenhuma criança. Atravessar as cortinas e penetrar na sala escura, vindo da claridade da rua, era como penetrar em um mundo mágico, onde coisas maravilhosas estavam por acontecer. O ambiente escuro e silencioso era perfeito para que a nossa atenção ficasse toda voltada para a tela gigantesca. E, durante aproximadamente duas horas esquecíamos o mundo lá fora concentrados apenas na luz que, vindo do fundo da sala, passava por sobre as nossas cabeças para projetar o filme à nossa frente. E, no fim do filme, o acender das luzes, o abrir das portas que nos permitiam voltar a ter contato com o mundo exterior, mostrando todo o movimento e barulho da rua, era como se acordássemos de um sono, para voltarmos a seguir nossa rotina. Experiência marcante por ser tão diferente de assistir um filme na tv, na sala de casa. Essa era a rotina: a sala de casa, clara e barulhenta, o filme que se materializava dentro da pequena tela da televisão. Enquanto a ida ao cinema era a quebra da rotina. Evento extraordinário. Crescemos, as telas diminuem de tamanho, compreendemos racionalmente a dinâmica da projeção que faz o filme “voar” sobre as nossas cabeças, as experiências cinematográficas (boas e ruins) se multiplicam, mas essas primeiras impressões não se apagam. E são elas justamente, creio eu, as responsáveis pela criação de legiões de cinéfilos.

Fachada do Cinema Carioca - Tijuca, RJ

Desde a década de 1940 os cinemas eram, além de tudo, marcos da nossa paisagem urbana. Construções imponentes que ajudaram a popularizar a art déco no Brasil, bastava olhá-las para saber que eram cinemas. As antessalas com grandes sofás confortáveis onde esperávamos o início da sessão, escadarias de mármore que levavam aos balcões, grandes lustres e relógios que lembravam estações de trem europeias, além dos imprescindíveis cartazes de filmes que anunciavam as atrações que estavam por vir. Os cinemas destoavam dos outros edifícios comerciais pelo requinte e detalhamento da sua arquitetura sem que isso significasse tratar-se de um divertimento de elite. Pelo contrário, se não estou enganado o cinema chegou a se transformar, em meados do século XX, o divertimento mais popular do Brasil. A ponto de se construírem grandes concentrações de cinemas em determinadas regiões da cidade. No Rio, a Cinelândia ganhou o nome que mantém até hoje justamente por isso. A Praça Saens Peña, na Tijuca, onde assisti as minhas primeiras sessões, era outra área de grande concentração de cinemas. Eles não faziam concorrência uns aos outros. Muito pelo contrário. O público podia até ter a sua sala de cinema preferida (a minha era o Carioca), mas não deixava de frequentar as outras desde que estivessem passando filmes do seu interesse. 

Foyer do Cinema Carioca - Tijuca, RJ

Mas, na última década do século passado, a concorrência do videocassete fez esvaziar as grandes salas de quinhentos lugares. O faturamento começou a não cobrir a despesa da sua manutenção. Primeiro fecharam-se os balcões. Depois, dividiram-se as salas em duas, três a até mais, às vezes. Para tentar multiplicar o público multiplicando a oferta. Alguns cinemas de rua conseguiram uma sobrevida com essa estratégia. Mas, logo começaram a aparecer os cinemas de shopping, que deram o golpe de misericórdia nos antigos cinemas de rua. Foi irresistível para o público a atração de um local onde, além de assistir o seu filme, você ainda podia estacionar o seu carro e fazer o seu lanche pré ou pós-sessão sem se preocupar com a segurança. Essa grande (e justificada) paranoia contemporânea dos grandes centros. E, assim, a sessão de cinema e o jantar com aquela pessoa especial podiam ser feitos praticamente no mesmo lugar. Mesmo que isso custasse um pouco mais caro. Ou que a tela fosse um pouco menor e o som vazasse de uma sala para a sua vizinha. Verdade seja dita, esses problemas técnicos foram sendo consertados com o tempo. E hoje os cinemas de shopping têm poltronas bem mais confortáveis do que as antigas poltronas dos cinemas de rua. De qualquer modo, toda essa transformação modificou bastante a experiência de uma ida ao cinema. Mas quem está preocupado com isso em uma sociedade cada dia mais pragmática e menos atenta para o mundo à sua volta?

O fato é que os outrora elegantes cinemas se tornaram “elefantes brancos”. E muitos fecharam definitivamente. Na Praça Saens Peña fecharam todos os sete cinemas de rua que existiam. Alguns espaços viraram igrejas evangélicas, que se aproveitaram da estrutura arquitetônica das salas de projeção para fazerem seus cultos. Outros viraram outros tipos de negócio, como farmácias e, até mesmo, lojas de departamento. Esses não tiveram tanta “sorte” quanto os anteriores e tiveram toda a sua arquitetura modificada (para não dizer destruída). Os mais desafortunados foram ao chão para dar lugar a arranha-céus. Ou para dar lugar a nada. Estacionamentos. Vazios urbanos. Terrenos com que se especular. Muito dirão que é melhor ter qualquer coisa funcionando naquele espaço que um dia foi um cinema do que mantê-lo fechado. Poluição visual, dirão outros. O que essas pessoas não percebem é que cada cinema que fecha, que desaparece do espaço urbano sem deixar vestígios para dar lugar a mais um prédio ou um mais estacionamento, leva junto um parte da memória da cidade. Que é também a memória dos seus habitantes. Deixa órfãos os milhares de pessoas que ali viveram experiências marcantes. Memórias revividas toda vez que passavam na porta daquele cinema. Se a porta não existe mais, as memórias também desaparecem. Questão de tempo para que nossas lembranças comecem a falhar se não encontram no espaço lugares de memória onde se materializem.

Cinemas são os exemplos mais expressivos da forma como concebo o patrimônio cultural. Mais do que monumentos ou “edifícios históricos”. Nos cinemas está materializada a história da comunidade que circula no seu entorno. Mesmo que parte dessa comunidade nunca o tenha frequentado. Cinema é marco físico, ponto de referência. E deixar um cinema morrer é deixar morrer parte da história da cidade. Por isso, cabe àqueles que se (pre)ocupam com a preservação da memória das cidades preservar os cinemas que ainda restam. Lutar para que eles mantenham o seu uso cultural. Mesmo passem a existir duas ou três salas onde antigamente havia apenas uma, mesmo que o cinema tenha que dividir o seu espaço com uma livraria e um café (tanto melhor), mesmo que não haja mais os grandes e confortáveis sofás ou os lustres e relógios art decó. Se as paredes estiverem de pé, e as portas abertas ao público, essas memórias não se perderão. 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

IMOBILIDADE URBANA

Depois de alguns posts criticando o fato do transporte público estar organizado de modo a atender aos interesses financeiros dos empresários do setor e não às necessidades da população, ainda assim acho necessário reafirmar a minha crença na utilização do transporte público como solução para o problema da mobilidade urbana nas grandes cidades brasileiras. Por que? Nada melhor do que uma experiência concreta para exemplificar os resultados de se optar pelo transporte individual.

Há quatro anos moro em uma cidade de aproximadamente meio milhão de habitantes na Zona da Mata de Minas Gerais. Apesar de contar com uma linha férrea que corta a cidade (em sentido literal e figurado) dividindo-a em duas, o transporte de passageiros aqui é totalmente feito por ônibus. A linha férrea é explorada apenas por uma empresa privada de logística cujos trens cortam a cidade várias vezes ao dia, marcando o cotidiano da população, muitas vezes atrasando a vida daqueles que diariamente tem que cruzá-la e complicando ainda mais a questão da mobilidade urbana na cidade. Em troca da possibilidade de atravessar o cotidiano da cidade (mais uma vez, em sentido literal e figurado) com seus trens de carga, essa empresa acha suficiente criar um número muito limitado de empregos para os seus moradores. Ah... ela também patrocina o time de futebol da cidade. Por algum motivo que escapa à minha compreensão, os sucessivos prefeitos da cidade não exigem mais nenhum tipo de contrapartida social por parte da empresa. Assim, apesar de ainda existirem, espalhadas pela cidade, algumas antigas estações de passageiros, hoje a população não se beneficia em nada da existência da linha férrea. Muito pelo contrário. A sua presença é vista por boa parte da população como algo negativo, um estorvo que atrapalha. Também não há metrô na cidade. O que se justifica pelo tamanho da população e, mesmo pelo relevo da cidade.


Assim sendo, como dito antes, o transporte de passageiros é totalmente feito por meio rodoviário. O serviço de ônibus está dividido entre sete concessionárias que atuam em áreas diferentes da cidade, servindo os seus bairros. Porém, como uma concessionária não pode operar na área da outra, só há ligação de bairro para bairro dentro da área controlada pela mesma concessionária. O que equivale a dizer, por exemplo, que as linhas que rodam na zona norte não circulam na zona sul. E se você precisa se deslocar de um bairro da zona norte para um bairro da zona sul terá que, por força, fazer uma baldeação no centro da cidade, para onde converge a maioria absoluta das linhas. Dessa forma, na ausência absoluta de uma ligação direta bairro-bairro, o cidadão é obrigado muitas vezes a pegar dois ônibus para fazer qualquer trajeto, tendo que fazer a passagem obrigatória pelo centro. E essa baldeação onera principalmente os moradores das áreas mais afastadas do centro. Até porque nunca sequer entrou em pauta por essas bandas a discussão para a implantação de um sistema de bilhete único. Os beneficiados por esse sistema vocês já devem ter percebidos quem são. Por trás dessa situação mais uma vez se encontram ligações não totalmente transparentes entre os interesses privados e o poder público. Em 2009, o então prefeito da cidade foi obrigado a renunciar para evitar a cassação do seu mandato, acusado de receber propina de empresas de ônibus. Desde 2010 há um processo de licitação das linhas de ônibus parado em alguma instância do legislativo municipal. E a atual composição da Câmara de Vereadores conta com um vereador que além de proprietário de uma empresa de ônibus, é proprietário também de uma auto-escola.

Para piorar esse quadro, algumas linhas operam muito abaixo da necessidade, levando os moradores a uma espera de 50 minutos ou mais pelo seu ônibus. A solução que o cidadão encontrou para escapar dessa verdadeira armadilha feita pelas empresas de ônibus foi, obviamente, apelar para a solução privatista e individualista: comprar o seu próprio carro. A cidade conta hoje com um carro para cada quatro habitantes! O que faz com ela tenha problemas de trânsito do porte de cidades com mais de um milhão de habitantes, como engarrafamentos estressantes nos horários de pico e, principalmente mas não exclusivamente, na área central da cidade, onde os carros têm que concorrer com a convergência das linhas de ônibus. Para completar, a cidade conta com uma estrutura viária antiquada nos bairros, com ruas estreitas e de mão-dupla e que ainda têm que servir de estacionamento para a sempre crescente frota de carros particulares. Diante dessa situação, um gênero de negócio que encontra um terreno muito fértil para prosperar em Juiz de Fora é justamente as auto-escolas. Não por acaso, o outro ramo de atuação do vereador citado acima. Além de revendedoras de automóveis e os postos de gasolina, que são os verdadeiros beneficiados por todo esse sistema. O único que não sai lucrando nessa história é o cidadão, que é obrigado a comprar um carro e enfrentar engarrafamentos para fazer trajetos, às vezes, ridiculamente pequenos (o que significa gastar muito com gasolina e manutenção devido à estrutura viária precária da cidade). Isso sem falar das implicações da “cultura do carro próprio” para a própria organização espacial da cidade: que vai desde a demolição de moradias na área central da cidade para a abertura de estacionamentos que nunca dão conta de uma demanda sempre crescente, até o crescimento de bairros cada vez mais afastados que não contam com uma oferta de serviços os mais básicos (como açougues, supermercados ou bancos).

Assim, não é apenas a população de baixa renda, que não tem dinheiro para comprar o seu carro, que é prejudicada pela forma como está “organizado” (com muita ironia aqui, por favor) o sistema de transporte público da cidade, mas a população como um todo. Aqueles que dependem dos ônibus, que perdem seus compromissos porque o ônibus não passou, mas também a população que utiliza o transporte particular, que enfrenta engarrafamentos, ruas em péssimo estado de conservação e gasta o que pode e o que não pode com a manutenção do carro. Por outro lado, um sistema de transporte público que realmente atendesse às necessidades da população também beneficiaria a população como um todo, fazendo com que as pessoas deixassem o carro em casa e andassem de ônibus (ou trem); ou que, pelo menos, diminuísse o fluxo de veículos nas ruas, diminuindo os engarrafamentos e o stress. Dessa forma, é só analisar a situação com um pouco mais atenção para perceber que nunca foi, nem nunca vai ser, apenas por 20 centavos.

Para terminar esse post, coloco o link de uma reportagem que aborda o problema da "imobilidade urbana" nas cidades do interior de Minas Gerais:

segunda-feira, 29 de julho de 2013

SUMIÇO E PROTESTOS

Eu sumi, eu sei. Peço desculpas por isso (mais uma vez). E sumi justamente em um momento em que os temas que são o objeto desse blog ganharam um espaço nunca antes visto nos meios de comunicação alternativos e de massa e na boca do povo. E isso é o mais grave. Nunca antes na história desse país (parafraseando alguém), ou nunca antes desde que eu comecei a me ocupar do assunto (para ser mais modesto), temas como transporte público e política de mobilidade urbana tiveram tanto destaque. Claro que estou me referindo ao efeito das manifestações contra o aumento no preço das passagens de ônibus que eclodiram por todo o país desde o início de junho. E aqui tenho que pedir desculpas de novo. Não sumi porque estou participando ativamente das manifestações nas ruas, mas por compromissos profissionais mesmo, que ocuparam todo o meu tempo nos últimos dois meses. Minha militância no tema “se resume” à esse blog e à sala de aula. Onde acredito que posso levar um número maior de pessoas a refletirem sobre o assunto.

Desde o começo das manifestações nas ruas eu quero escrever algo sobre esse movimento. Mas o tempo estava (está) escasso. Como todos vocês já devem ter percebido, as manifestações não são sobre 20 centavos. Mas sim sobre o direito à cidade. Sobre o reestabelecimento da relação entre cidade e cidadania. Relação que vem constantemente sendo afrontada pelos governos municipais e estaduais. O aumento no preço das passagens foi apenas a gota d’água que entornou o balde da insatisfação da população dos grandes centros urbanos brasileiros com a falta de planejamento urbano e o descaso de alguns governantes com a situação da mobilidade urbana nas suas cidades. O que eu venho apontando em diversas postagens nesse blog: 


Os moradores das nossas capitais que cotidianamente são obrigados a se deslocarem entre a sua casa e o trabalho ou o lazer enfrentam um sistema de transportes desconfortável, inseguro, nada pontual e, sobretudo, caro. Muito caro para o serviço que é oferecido. Isso sem contar as quebras constantes (de trens e ônibus) e os engarrafamentos cada dia maiores. Ir e voltar do trabalho ou do lazer se tornou uma via-crúcis para moradores de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. E a culpa dessa situação é da falta de planejamento e investimento, por parte de prefeitos e governadores em uma política de mobilidade urbana que garanta ao morador o seu direito de ir e vir sem que precise gastar três ou mais horas do seu dia em deslocamento.

A população dessas cidades se deu conta de que o transporte público hoje no Brasil serve não às necessidades da população e sim aos interesses de empresários do setor e de seus aliados no Poder Executivo e no Legislativo. E o constante aumento no preço das passagens (sempre bem acima da inflação e sem a apresentação de planilhas que as justifiquem ) é a prova mais clara disso. A situação no Rio de Janeiro (já amplamente divulgada na mídia alternativa) é emblemática. O governador do Estado é casado com a filha do maior empresário do ramo de transportes do Rio de Janeiro: Jacob Barata, conhecido como o “Rei do Ônibus”, que veio do Pará para o Rio de Janeiro na década de 1950 com “uma mão na frente e outra atrás” (como se diz popularmente) e começou a trabalhar com transporte rodoviário no momento mesmo em os bondes começavam a ser substituídos pelos ônibus no Rio de Janeiro. Hoje Barata é proprietário de 25 empresas de transporte em quatro regiões do país. No maravilhoso mundo de faz-de-conta do capitalismo neoliberal, Jacob Barata seria um caso de sucesso nos negócios. Um empresário digno e bem sucedido que prosperou graças ao seu próprio esforço. O que não se conta nessa história é que o seu sucesso no ramo de transportes dependeu diretamente de um “bom relacionamento” com sucessivas administrações municipais e estaduais, que favoreceram o transporte rodoviário nas suas políticas de planejamento urbano (ou na falta de delas). Sucessivas administrações sim! Porque os atuais Prefeito e Governador do Rio não são os primeiros a favorecer os interesses dos empresários do setor. O interesse particular de Barata e de outros empresários do ramo é há muito privilegiado em detrimento das necessidades da população que utiliza o serviço. Segundo o jornal O Globo, apenas 4 empresários concentram um terço do transporte rodoviário no Rio. Privilégio que determinou ausência de investimento em outros modais, como o trem, o metrô ou as barcas (serviços que se encontram hoje privatizados e sucateados), ou mesmo em uma integração transmodal, que resolveria muitos problemas de deslocamento dentro da cidade, mas que certamente reduziria os lucros dos empresários de ônibus. Barata à frente. Para completar o ciclo, a esposa do governador e filha do empresário é, também, advogada dos consórcios particulares que administram o transporte público no Rio: a CCR Barcas, o Metrô Rio e a Supervia. 

As manifestações que continuam acontecendo pelo país, que começaram em São Paulo mas encontram nesse momento o seu maior foco de concentração no Rio de Janeiro (não por acaso, como pode se deduzir do parágrafo anterior), denunciam justamente essas parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, onde os cidadãos não tem as suas necessidades levadas em consideração. Desde bastante tempo, mas principalmente nas últimas gestões municipal e estadual, a cidade vem sofrendo um processo profundo de privatização do seu espaço urbano. Tendo agora como desculpa a preparação da cidade para os megaeventos que já começaram a acontecer, o carioca vem sendo alijado dos seus espaços públicos de lazer e convivência. Foi-se o Maracanã, recentemente privatizado, e continua a luta pela preservação do Aterro do Flamengo. Vem sendo privado do seu direito de estar na rua. E a repressão às manifestações tem deixado esse fato bem claro. O carioca está indo às ruas para preservar o seu direito de circular na sua própria cidade sem que precise pagar pedágio para os grandes empresários, amigos pessoais de prefeitos e governadores. O carioca cansou de jogar Banco Imobiliário e resolveu jogar War.



segunda-feira, 6 de maio de 2013

A CIDADE COMO UM BANCO IMOBILIÁRIO


Na semana passada os jornais noticiaram a decisão da Prefeitura do Rio de recolher das escolas municipais o jogo Banco Imobiliário – Cidade Olímpica. Para quem não sabe do que se trata, é uma nova versão do tradicional jogo de tabuleiro, lançada no final de fevereiro em uma parceria entre a Brinquedos Estrela e a Prefeitura do Rio. O jogo seria comercializado a partir de maio, mas a Prefeitura já havia comprado 20 mil unidades do jogo para distribuir nas escolas municipais, no valor de aproximadamente 1 milhão de reais. Dinheiro que saiu do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB). Verba que é repassada pelo Governo Federal aos municípios para investimento na educação básica, como indica a própria sigla. A compra e distribuição do jogo geraram críticas e protestos por parte de pais e professores, além de dois inquéritos abertos pelo Ministério Público do Estado do Rio. A iniciativa foi interpretada como propaganda do governo municipal, pois o jogo faz alusão a obras feitas pela atual gestão.  O prefeito se defende dizendo que o lançamento do jogo foi uma decisão da Estrela e que não se trata de propaganda política, porque foi criado depois das eleições. Como se propaganda eleitoral se fizesse apenas em época de eleição.



De todo o imbróglio, que foi amplamente noticiado, a questão que interessa a esse blog é como um jogo que, em tese, homenageia a cidade, comemorando o fato dela ter sido escolhida como sede dos próximos Jogos Olímpicos, serve, na verdade, para mostrar a forma como a atual prefeitura encara o espaço urbano. Com que olhos ela vê a cidade. Creio que todo mundo conhece a mecânica do jogo clássico: os jogadores circulam por um tabuleiro onde as casas representam companhias de transporte de cargas e de passageiros e bairros famosos do Rio e de São Paulo (pelo menos, na versão que eu joguei durante a minha infância. Diz a Estrela, para se defender das acusações de estar fazendo propaganda da atual Prefeitura, que já lançou mais de dez versões diferentes do jogo). Os jogadores podem comprar essas casas e construir nelas casas e hotéis. Os outros jogadores que “caem” em terrenos ou empresas com dono devem pagar ao proprietário a taxa (no caso de empresa) ou o aluguel equivalente aos imóveis que ele tem construídos lá. O objetivo do jogo é tornar-se o jogador mais rico pela compra, venda ou aluguel de propriedades. 


Na nova versão do jogo, as casas são bairros do Rio, pontos turísticos tradicionais (como o Corcovado ou o Pão de Açúcar), empresas de transporte (como o Metro e os BRTs), equipamentos esportivos que estão sendo construídos ou reformados para os Jogos (como o Maracanã, o Parque Olímpico e a Vila dos Atletas) e, até mesmo empresas municipais como a Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb) e a RioFilme. O jogo faz referência ainda a marcas criadas pela atual prefeitura no seu processo de intervenção urbana visando os Jogos Olímpicos, tais como: o Porto Maravilha, o Bairro Carioca, a Clinica da Família e o Museu de Arte do Rio (Mar). Dessa forma, o objetivo dos jogadores passa a ser enriquecer explorando esses equipamentos urbanos. 


Dessa forma, o jogo que pretensamente enalteceria a cidade, na verdade naturaliza a visão da cidade como oportunidade de negócios (ou como um "balcão de negócios", como se referem os críticos do atual prefeito). Mas negócios feitos com equipamentos públicos, cuja função deixa de ser atender às necessidades dos cidadãos e passa a ser enriquecer os seus proprietários! O acesso à saúde e ao transporte, por exemplo (representados no jogo pelas Clínicas da Família e BRTs), se tornam investimentos privados. Igualmente grave, na minha opinião, é a utilização da mesma lógica de mercado em equipamentos culturais públicos (como a Riofilme e o Museu de Arte do Rio, que estão no tabuleiro da nova versão). Pois as ações da Prefeitura no campo cultural deveriam se guiar no propósito de formação de público, disseminação do conhecimento, de prover oportunidades de construção de um  capital simbólico (o conceito é de Pierre Bourdieu) por parte dos cidadãos. E não pelo propósito de auferir lucros. Como explicou a arquiteta e professora da USP Raquel Rolnik no seu blog, o jogo explicita, banaliza e até transforma em algo positivo a vinculação das ações da Prefeitura do Rio com o processo de valorização imobiliária e mercantilização da cidade ora em curso. Expõe de forma lúdica, a lógica implícita em Parcerias Público-Privadas celebradas pela atual administração municipal, onde as obras públicas, feitas com dinheiro público, servem para dar lucro a investidores privados. Em uma mistura do público com o privado que já virou tradição na nossa sociedade.

A cidade como um balcão de negócios na representação genial de Rafucko

Segundo a Secretária Municipal de Educação, a administradora de empresas Claudia Costin, a distribuição do jogo nas escolas municipais se justifica pois ele pode ser utilizado de forma pedagógica, uma vez que disciplinas como geografia, história e matemática, além de temas transversais como a preservação cultural da cidade, poderiam ser trabalhados com os alunos (eu realmente gostaria de saber o que essa senhora entende sobre ensino de História para fazer uma afirmação como essa). Mas, a minha principal dúvida é qual o projeto pedagógico que embasa a utilização em sala de aula de um jogo com uma visão tão distorcida dos deveres do poder público para com o espaço urbano. Como escreveu a arquiteta Andréa Redondo em seu blog, o jogo é um produto do "duplipensar". Conceito criado pelo escritor George Orwell em sua obra-prima "1984", e definido como a capacidade de armazenar duas crenças contraditórias simultaneamente e aceitar ambas. Ou, citando outro exemplo do mesmo livro, é o modo de pensar que permite a falsificação e alteração da realidade com o fim de torná-la, para o indivíduo, aparentemente inalterável. É por meio do duplipensar que o gestor da coisa pública “aplica um truque” na realidade mas, ao mesmo tempo, se convence de que a realidade não está sendo violada. Dessa forma, o projeto pedagógico que embasa a utilização do jogo nas escolas municipais é o "Duplipensar". E o resultado esperado é fazer com que, desde novos, os cidadãos do Rio de Janeiro naturalizem a ideia de que espaço público é apenas mais um produto à venda.

Quem jogou Banco Imobiliário na infância, ou mesmo na adolescência, com certeza lembra das famigeradas cartas de Sorte ou Revés e da temida Prisão. Pois o Banco Imobiliário da Prefeitura do Rio consegue subverter até a lógica da Sorte/Revés. Uma carta de revés, por exemplo, faz referência à “Doação para projeto social”, que se transforma em algo negativo, pois o jogador que a tira tem que se desfazer de $ 200.000.  Por outro lado, o jogador também pode tirar a sorte de seu o imóvel ser valorizado devido à “pacificação” da comunidade vizinha. Então, ele recebe $ 75.000.  Diante de tanta coisa errada, fiquei curioso para saber qual a carta de Revés que te leva para a prisão.



segunda-feira, 29 de abril de 2013

REFLEXÕES SOBRE A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL II


Na semana passada, entre os dias 23 e 25, participei do III Seminário “Olhar sobre o que é nosso”, promovido pelo Departamento de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura (que por aqui se chama Fundação Cultural Alfredo Ferreira Laje – FUNALFA) da Prefeitura de Juiz de Fora. Como meus poucos, porém inteligentes, leitores já devem ter percebido, o Seminário se propunha a discutir temas relacionados à preservação do patrimônio cultural em geral, e do patrimônio de Juiz de Fora, em particular. O tema dessa terceira edição versava sobre “As transformações da cidade e seus bens integrados”.
Na programação do Seminário, o primeiro dia teria três mesas dedicadas à discussão da intervenção em núcleos históricos (que eu prefiro denominar, de uma forma mais geral, de núcleos urbanos uma vez que, pela perspectiva do historiador todo núcleo urbano é histórico). Todas as três inteiramente compostas por arquitetos. O que me causou certa estranheza. Talvez por ter feito a minha especialização em Patrimônio Cultural em um ambiente que tinha a multidisciplinaridade por fundamento. Na minha turma do Programa de Especialização em Patrimônio do IPHAN/UNESCO (segunda turma, 2006) tínhamos desde designers até jornalistas, passando por antropólogos e, até mesmo, arquitetos! No PEP aprendi que patrimônio cultural não é (ou não deve ser) uma área de atuação exclusiva de arquitetos, e que a multiplicidade de olhares enriquece a preservação do patrimônio. Infelizmente, esse entendimento ainda parece estar engatinhando no dia a dia da preservação do patrimônio pelos municípios do Brasil afora. Os outros dois dias do Seminário foram reservados a mesas sobre os tais “bens integrados”. No segundo dia, duas palestras sobre arte tumular, e no último dia, duas palestras a respeito de vitrais.
Como não é minha intenção aqui fazer uma resenha do Seminário inteiro, gostaria de destacar nesse texto, entre todas as palestras interessantes que assisti ao longo desses três dias, a palestra inaugural do Seminário: “Intervenções em núcleos históricos”, proferida pelo professor doutor Andrey Rosenthal Schlee, Diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN. O professor Andrey procurou ressaltar como as atuais intervenções realizadas pelo IPHAN em núcleos históricos não se restringem ao tombamento e restauração de bens isolados, fruto certamente do entendimento de que a preservação do patrimônio cultural depende igualmente de uma delimitação e tratamento cuidadoso do seu entorno. Dessa forma, tais intervenções buscam sempre, pela restauração e refuncionalização do bem histórico/cultural, “requalificar” toda a região do seu entorno. Nesse processo de criação de “áreas qualificadas” ao redor do bem tombado, há sempre a preocupação de recuperar o simbolismo de marcos físicos que fazem parte da história da constituição desse núcleos urbanos (em boa parte das vezes, mas nem sempre, tais marcos são o próprio bem a ser preservado pelo IPHAN). Como, por exemplo, a ligação da cidade com o seu porto, ou com a estação da via férrea que foram os seus pontos de origem. É muito comum que a dinâmica de seu desenvolvimento faça com que a cidade vire as costas para o seu “marco zero”, e tais relações se percam. Criando ou recuperando áreas de convívio (como praças, parques, deques, etc.), essas intervenções ressaltam a relação existente entre a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de vida dos morados desses núcleos urbanos. Ao mesmo tempo, pela criação de áreas turísticas, a valorização da memória local aparece também, através da intervenção para a preservação do patrimônio cultural, como uma estratégia para o desenvolvimento local.
Em alguma medida, essa forma de intervenção em núcleos urbanos se contrapõe ao argumento daqueles que negam o papel do tombamento como instrumento para tratar de problemas urbanísticos relacionados à qualidade de vida nas cidades, tais como o adensamento urbano ou a mobilidade urbana. Esse tipo de intervenção mostra que, se por um lado, o tombamento não trata diretamente desses problemas; por outro lado, ele pode se configurar como ponto de partida para que eles sejam abordados e resolvidos. O que é importante sempre ter em mente é que na medida mesma em que as políticas de preservação do patrimônio cultural material atuam no espaço urbano, que é onde se encontram esses bens (na esmagadora parte das vezes), elas tem necessariamente uma dimensão de política urbanística, influenciando a dinâmica social do entorno dos bens preservados e da cidade como um todo.
Infelizmente, no final da sua palestra, o professor Andrey pisou na bola ao responder a uma pergunta do público sobre a sua opinião a respeito das intervenções que atualmente vem sendo feitas no Rio de Janeiro. O palestrante, então, elogiou o prefeito Eduardo Paes como “um grande prefeito”, que está fazendo “obras memoráveis” na cidade, comparando-o mesmo a Francisco Pereira Passos, prefeito que remodelou o Rio no começo do século XX (essa comparação até faz algum sentido, mas não pelos motivos que o palestrante ressaltou). Na mesma resposta, ainda reduziu as críticas às obras promovidas pela Prefeitura à mera oposição política ao prefeito. Como se essas críticas, mesmo quando vindas de pessoas envolvidas com a preservação do patrimônio, obedecessem apenas a interesses do jogo político, totalmente alheios à discussão do patrimônio cultural. O que, a meu ver, é uma forma muito reducionista de se enxergar o que tem sido feito na cidade. Nenhuma palavra sobre a privatização de espaços públicos, sobre as discutíveis parcerias público-privadas onde o interesse privado sobressai ao interesse público, sobre o desperdício de dinheiro público, sobre o desrespeito com áreas já tombadas e com a própria história da cidade, etc. Depois de discorrer tanto, e tão bem, sobre a relação existente entre a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de vida dos cidadãos, essa resposta do professor Andrey me deixou a impressão de que para ele, ao fim e ao cabo, apenas o que conta na política de preservação do patrimônio cultural são os critérios técnicos. Como se não houvesse muita disputa política envolvida em qualquer intervenção em área urbana. Afinal de contas, o termo “política” vem de “pólis”, não é? E, com “disputa política” não estou me referindo aqui à práxis política rasteira que estamos acostumados a ver a nossa classe política praticar diariamente. Estou me referindo à luta pelo direito a um lugar no espaço urbano frente aos outros agentes que também atuam no mesmo espaço. Em particular, uma luta contra a especulação imobiliária que, diga-se de passagem tem um braço político bastante forte (e aqui sim, eu me refiro à política rasteira, da troca de favores). Uma luta por visibilidade que, no seu extremo, significa uma luta por cidadania. Porque, ao fim e ao cabo, é disso que trata a preservação do patrimônio cultural.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

OS TRANSPORTES PÚBLICOS E A PRIVATIZAÇÃO

A polêmica a respeito da privatização ou não do Complexo Desportivo do Maracanã, que eu abordei nesse post aqui, trouxe a tona o debate a respeito de outras privatizações feitas no final dos anos 90 e começo dos anos 2000: a privatização dos meios de transporte no Rio de Janeiro. O carioca usuário dos serviços dos trens, metrôs e barcas enfrenta hoje um verdadeiro caos nesses transportes, privatizados há aproximadamente 15 anos sob o pretexto de que o Estado não conseguia prestar um serviço satisfatório. A promessa era a de que, privatizados, trem, metrô e barcas passariam a prestar um serviço de excelência, pois a iniciativa privada, teoricamente, tem a verba que falta ao Estado para investir na melhoria do sistema. Mas parece que só teoricamente. Porque no dia 13 de abril, o jornal O Dia, que é voltado para o público de classe média baixa, usuários do transporte público, trouxe como reportagem de capa uma matéria sobre o caos no transporte ferroviário do Rio. 


Partindo dessa reportagem, o blog Cidades Possíveis perguntou: 15 anos não é tempo suficiente para se melhorar o sistema ferroviário?  Infelizmente, essa situação não é exclusividade da Supervia. Reforço, então, o coro: depois de 15 anos o carioca não deveria estar usufruindo de um transporte “de primeiro mundo”? Aliás, para fazer jus à tarifa “de primeiro mundo” que ele paga (que nós pagamos).

Curiosamente, muitas pessoas ainda hoje veem a privatização como solução para os problemas de mau funcionamento dos serviços públicos. Infelizmente, essas pessoas não percebem que esse mal funcionamento é fruto de um processo de sucateamento dos serviços públicos, levado a cabo durante décadas por governantes que estavam mais preocupados com interesses particulares do que com o interesse público. Com os serviços públicos sucateados é fácil construir a ideia de que o serviço particular é sempre necessariamente melhor do que o público, e conseguir com que boa parte da população brasileira apoie qualquer iniciativa de privatização desses mesmos serviços. Mesmo de serviços essenciais, direitos do cidadão, e que deveriam ser garantidos pelo Estado, tais como a saúde, a educação e o transporte. Essa defesa da privatização é hoje alimentada pela onda neoconservadora que se espalha pelo país disseminando um ideário político, econômico e social liberal que prega o Estado mínimo. Ou pior, Estado nenhum. Pois acredita que em todas as áreas a livre concorrência sempre é capaz de regular o mercado, beneficiando os usuários. Eu tenho a impressão de que nem o próprio Adam Smith acreditava verdadeiramente nessa ideia. De todo modo, consigo entender perfeitamente a crítica à nossa tradição estatista e a necessidade de diminuição das áreas de atuação do Estado. Durante muito tempo o Estado brasileiro monopolizou serviços que não podem ser considerados como de primeira necessidade, e onde a livre concorrência (se isso existisse de verdade) faria um grande bem. Como os serviços de telefonia, de informática, ou de correios, por exemplo. O grande número de reclamações contra as empresas de telefonia que atualmente se registram no Procon ou em sites como o Reclame Aqui, porém, nos mostra que alguma coisa está não está certa nesses processos de privatização. 

Acompanhei de perto, como usuário, o processo de privatização do metrô e das barcas. O metro foi privatizado porque, dizia-se, dava prejuízo para o Estado. Apesar de ser motivo de orgulho para a população carioca. Enquanto ainda era um serviço público, o metro do Rio era um meio transporte seguro, pontual e confortável. Na verdade, o processo de privatização do metro transferiu para o controle da iniciativa privada apenas a operação dos trens (leia-se aqui, a cobrança das passagens). A manutenção de trens e da linha, assim como a aquisição de novas composições continuou (e continua) a cargo do Estado. Ou seja, a parte lucrativa ficou na mão dos empresários, enquanto a parte mais cara da operação do sistema continuou sob a responsabilidade do Estado. Foge à minha capacidade de compreensão por qual lógica se livrar da parte lucrativa da operação faria com que o metro parasse de dar prejuízo ao Estado. Para deixar de dar prejuízo e passar a dar lucro, a primeira medida tomada pela concessionária foi uma demissão em massa de funcionários. Por outro lado, os investimentos feitos pela concessionária concentraram-se quase completamente na identidade visual do serviço. Uma reforma em algumas estações dotou-as de escadas rolantes. Mas não em todas, e foi só isso. A questão é que, nesses 15 anos de operação privatizada a qualidade do serviço prestado pelo metrô caiu em proporção inversa à alta do preço da passagem. Hoje temos o metro mais caro do país. A página Metrô que o Rio precisa, do Facebook, vem postando diariamente as fotos que mostram a situação de caos no transporte metroviário.  



O processo de privatização do serviço de barcas que liga o Rio de Janeiro a Niterói, Paquetá e Ilha do Governador foi ainda mais escandaloso. Em primeiro lugar porque integravam o consórcio que venceu a disputa para assumir o controle do sistema, nada mais nada menos do que uma empresa de ônibus que já fazia o transporte rodoviário de passageiros entre Rio e Niterói e uma empresa que já fazia parte do grupo que tinha assumido a operação da ponte Rio-Niterói (privatizada 4 anos antes das barcas). Dessa forma, essas duas empresas passaram a controlar o lucrativo serviço de transporte marítimo e rodoviário de passageiros entre as duas principais cidades do Estado. Em suma, uma privatização não para estimular a livre concorrência mas para acabar com ela e gerar um monopólio. Deixando o usuário sem opção. Um post no blog do jornalista Luís Nassif expõe em detalhes o resultado desse monopólio, e nos passa a impressão de que a concessionária tinha a intenção de beneficiar a travessia rodoviária da Baía da Guanabara e não o transporte marítimo. Ao longo desses 15 anos de concessão os investimentos no sistema também foram mínimos, e a concessionária deixou de cumprir com várias obrigações previstas no contrato de concessão.  Se, por um lado, ela “modernizou” os serviços na Estação da Praça XV (apenas aí, os outros continuaram iguais a antes, pelo que sei); por outro lado, o preço da passagem subiu vertiginosamente chegando ao cúmulo de sofrer um reajuste da ordem de 60% em 2012 (a travessia entre Rio e Niterói passou de R$2,80 para R$ 4,50). Assim como no caso do metrô, o serviço prestado pelas barcas foi se deteriorando ao longo desse tempo. O serviço prestado pela antiga Conerj podia não ser dos melhores, mas estava muito longe de se assemelhar da situação atual, quando na hora do rush a fila para entrar na estação da Praça XV chega até a Rua Primeiro de Março!! Se você que me lê não é morador do Rio, procure Praça XV e Rua Primeiro de Março no Google Maps e pasme. A situação precária do serviço oferecido hoje pela CCR Barcas foi recentemente motivo de uma manifestação deusuários indignados por ocasião da divulgação de mais um aumento de tarifa.



O resultado do caos nos transportes ferroviário e marítimo do Rio é uma maior procura pelo serviço dos ônibus e das vans. Hoje 70% do transporte de passageiros na Região Metropolitana do Rio é feito por ônibus. O que nos leva a concluir que deu certo a estratégia dos empresários de ônibus para eliminar a concorrência ao serviço que eles prestam. Um serviço que também vive à beira do caos, com ônibus velhos, sujos, inseguros e que não dão conta da demanda nos horários do rush. Um serviço que, sobretudo, tem um impacto direto na qualidade de vida do cidadão. Pois, na medida em que as cidades crescem e aumentam as distâncias e o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho ou entre a casa e o lazer, o problema da mobilidade urbana se torna crucial para a qualidade de vida dos seus habitantes. Levar 10 ou 20 minutos a menos no trajeto do trabalho para casa pode significar mais tempo para o lazer, para ficar com a família, para cuidar da educação dos filhos. Pode significar também menos procura aos hospitais, a psicólogos, a psiquiatras. Ninguém ignora que o transito é uma das maiores causas de stress da sociedade contemporânea. E que os transportes ferroviário e marítimo levam grande vantagem com relação ao modelo rodoviário porque não causam, e portanto não enfrentam, engarrafamentos. Porém, quando a cidade começa a se preparar para sediar os grandes eventos de 2014 e 2016 qual a grande inovação que a administração municipal apresenta para o sistema de transporte de passageiros na cidade? O BRT (Bus Rapid Transit). Que nada mais é do que um corredor exclusivo para... ônibus.

O que é preciso entender de uma vez por todas é que o transporte público deve ser considerado direito dos cidadãos e a sua prestação não pode ficar à mercê dos caprichos do mercado, ou pior, do interesse particular de meia dúzia de empresários, para quem o lucro sempre vem em primeiro lugar. Infelizmente a administração municipal e estadual do Rio parecem estar pensando justamente no sentido contrário. Privatiza-se o transporte público, que para dar lucro tem que funcionar no limite da sua lotação e com o mínimo de investimento, e obriga-se os cidadãos a enfrentarem filas e preços absurdos ou a comprarem um carro particular (aqueles que tem condições de fazer isso), e aumentar o fluxo de carros nas ruas. Aumentando os engarrafamentos, a poluição do ar e sonora e o stress. E, assim, todos saem ganhando: donos de empresas de ônibus, donos de concessionárias, donos de postos de gasolina, donos de planos de saúde, donos de hospitais... Só quem sai perdendo é o cidadão. Mas, pelo visto, o interesse do cidadão é o que menos importa nesse processo.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL


Acabei de ler recentemente dois livros sobre preservação do patrimônio cultural escritos por advogados que atuam na área. E essa leitura me passou a forte impressão de que essa área tem deixado de ser um campo de atuação privilegiado de arquitetos, como até bem recentemente se apresentava no Brasil, para se tornar um campo privilegiado de atuação de advogados. Quero deixar claro desde já que não sou contra a atuação de advogados na área da preservação do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Creio que essa área necessita cada vez mais de advogados que entendam da legislação referente ao assunto e que saibam atuar a favor da preservação do patrimônio. Sim, para atuar a favor! Porque atuando contra já tem muita gente. 


Desde o estabelecimento das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, o instituto do tombamento se vê às voltas em disputas jurídicas. Principalmente em conflito aberto com o direito de propriedade, uma vez que com o tombamento surge a chamada limitação administrativa da propriedade privada dos bens tutelados, como explicam Nilo Lima de Azevedo e Wilson Coury Jabour Júnior, no seu livro Reflexões e Olhares, sobre o estabelecimento da prática de preservação do patrimônio cultural em Juiz de Fora (MG). É verdade que uma parcela da culpa do estabelecimento dessa situação de conflito coube à forma autoritária como o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) conduzia os processos de tombamento nos primeiros anos da sua atuação, guiado pela urgência requerida pela “retórica da perda”. Os proprietários dos bens escolhidos para fazer parte do acervo do patrimônio cultural nacional eram apenas informados que o seu imóvel havia sido tombado pelo órgão e que, a partir de então, eles teriam que seguir uma série de restrições. A primeira reação desses proprietários, para quem a tutela do IPHAN feria o direito de propriedade sobre o seu bem, era instituir um advogado que os auxiliasse a recuperar o direito que eles acreditavam que o órgão os estava roubando. A ideia de que um bem particular podia exercer uma “função social” era totalmente nova no Brasil e, por isso mesmo, muito mal compreendida pelos proprietários. O SPHAN também não se incomodou, nos seus primeiros anos de atuação, com ações de educação patrimonial para esclarecer o que significava ser proprietário de um bem tombado. Estabeleceu-se, por isso, uma espécie de diálogos de surdos, onde um interlocutor não conseguia escutar as razões do outro.

Acontece que o transcorrer de oito décadas não foram suficientes para alterar essa situação e garantir a prevalência da valorização da dimensão social/coletiva de um imóvel sobre o paradigma liberal de propriedade ainda muito forte no Brasil. Ou, cada vez mais forte, na medida mesma em que a onda neoconservadora que nesse momento se espalha pelo país faz com se dissemine cada vez mais a adoção do ideário econômico/político/social liberal, onde o direito à propriedade privada reina absoluto como direito fundamental. E hoje em dia, ainda ou cada vez mais, os proprietários de bens que apresentem interesse cultural para preservação, principalmente os localizados em áreas urbanas valorizadas pela especulação imobiliária, fogem da possibilidade de tombamento da sua propriedade de todas as formas possíveis. E, a mais utilizada delas, é a instituição de um advogado para garantir o seu direito de propriedade. Por isso, volto a repetir, é muito importante que tenhamos profissionais advogando a favor da causa do patrimônio. 

O que me incomoda nessa situação é o fato de que, cada vez mais, as decisões em torno da preservação ou não de um bem cultural, tem sido guiadas não por debates a respeito da sua valorização artística ou histórica, como deveria ocorrer; mas antes por debates a respeito da legalidade das políticas de preservação. Os advogados instituídos pelas partes interessadas na não preservação dos bens contestam os processos de tombamento baseados em pareceres jurídicos a respeito da constitucionalidade das leis de proteção ou da competência legal das instâncias instituídas para deliberar a respeito das políticas de preservação. Esses mesmos advogados, por vezes, mostram um desconhecimento completo a respeito dos conceitos e discussões que embasam as práticas de preservação do patrimônio cultural. Para eles não importam as discussões sobre a natureza material ou imaterial do patrimônio, a valorização do seu conteúdo simbólico, a pertinência da sua preservação como elemento construtor de uma memória social e de uma identidade coletiva, etc. O que interessa a eles é encontrar as brechas nas leis que instituem as políticas de preservação do patrimônio para que eles possam questionar a legalidade do ato. De acordo com os cânones da sua prática profissional, advogados assumem posições apriorísticas nas disputas em que estão envolvidos. Desde o início da sua atuação nas contendas, eles escolhem um lado para defender. O lado do seu contratante, obviamente. De acordo com essa postura, e para fazer valer os seus honorários, eles não estão dispostos a ouvir os argumentos do lado contrário, a não ser para rebatê-los; e muito menos a mudar de lado, reconhecendo a razão do outro lado, se for o caso. O que não acrescenta em nada na discussão a respeito da preservação do patrimônio cultural. 

Mais uma vez, eu repito e faço questão de deixar claro: não sou contra a atuação de advogados no campo do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Acredito mesmo que a análise do patrimônio cultural como objeto jurídico é um campo de atuação muito fértil para advogados, como mostra o recém-publicado livro de Yussef Daibert Salomão de Campos sobre a legislação em torno do patrimônio cultural imaterial: A Percepção do Intangível. Porém, um pedido de tombamento (ou de qualquer outro tipo de preservação) deve ser aceito ou refutado por profissionais que conheçam o significado do conceito de patrimônio cultural, que estejam a par da história das práticas de preservação do patrimônio no Brasil e no mundo e de toda a trajetória das discussões em torno do assunto, que saibam debater os temas que hoje embasam e orientam essas práticas, tais como: a inadequação do uso das ideias de excepcionalidade e autenticidade (consagradas, porém ultrapassadas), a inclusão do conceito antropológico de cultura na atribuição de valor dos bens, a não separação ou hierarquização dos bens pela sua natureza (material ou imaterial), a importância da atribuição de valor ao bem pela comunidade que o cerca, etc. O profissional que pretende trabalhar na área da proteção do patrimônio cultural, ou mesmo aquele que pretende se colocar contra a proteção, deve dominar esses temas. Pouco importando qual seja a sua formação. Porque senão, estaremos sempre reproduzindo um diálogo de surdos.


terça-feira, 9 de abril de 2013

REABERTURA DO MUSEU DO TREM NO RIO DE JANEIRO

O IPHAN reabriu no dia 2 desse mês o Museu do Trem, no Rio de Janeiro, que estava fechado desde 2007. Para quem, como eu, é um entusiasta do transporte ferroviário e acha que o transporte de cargas e passageiros deveria voltar a ser feito sobre trilhos no Brasil, esse é um programa imperdível. O acervo conta com mais de mil itens, mas o seu ponto alto é com certeza a locomotiva Baroneza, de fabricação inglesa, movida a vapor e a primeira a trafegar na estrada de ferro que ligava o Rio de Janeiro a Petrópolis a partir do porto de Mauá, no "fundo" da Baía da Guanabara. Ferrovia pioneira no país, implantada em 1854 por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.


O horário de funcionamento está meio ingrato, por enquanto: de segunda à sexta, das 10 às 15 horas. Mas a entrada é franca. O Museu do Trem fica na Rua Arquias Cordeiro, 1046, no bairro do Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio. 


segunda-feira, 8 de abril de 2013

O MARACANÃ E A CIDADE


Grandes polêmicas tem envolvido as obras que estão sendo feitas para a Copa e as Olimpíadas no Rio de Janeiro (ou, pelo menos, que estão sendo feitas com esse pretexto). Uma das mais discutidas nesse momento é a que diz respeito ao processo de reforma e privatização do complexo desportivo do Maracanã. O público em geral tem se dividido entre opositores e defensores da privatização. Não vem ao caso discutir nesse texto se esses dois grupos correspondem exatamente aos opositores e defensores dos governos de Sérgio Cabral e Eduardo Paes. É uma discussão importante, mas na qual não pretendo entrar aqui. Até porque esse texto já está grande demais sem ela. E, desde já, me desculpo por isso. 


Os argumentos dos opositores é de que a privatização do Maracanã faz parte de um processo de elitização do espaço que começou nas reformas do Estádio para o Pan-Americano com o fechamento da geral, o aumento do preço dos ingressos, a construção de camarotes e a redução do número total de lugares daquele que já foi o maior estádio do mundo. Tudo justificado como exigências da FIFA para a modernização do Estádio. Sem querer negar a existência desse processo de elitização, devo admitir que algumas dessas exigências são até compreensíveis. Como é o caso da própria existência da Geral. Apesar de muito romantizada e de fazer parte da história e de todo o folclore que envolve os jogos no Maracanã, a Geral era um espaço que não garantia a segurança nem dos torcedores que lá estavam e nem dos jogadores que estavam em campo. Mas, quando foi construída, junto com o projeto original do Estádio, não havia as preocupações com segurança que há hoje. O seu desaparecimento, porém, se tornou símbolo desse processo de elitização do Maracanã. Que é, a meu ver, apenas mais um capítulo do processo de elitização do lazer na cidade do Rio de Janeiro e da cidade mesma como um todo, que vem marcando a administração do atual prefeito. Reeleito com 70% dos votos dos cariocas, não custa lembrar. O que deve significar que a maioria da população da cidade apoia esse processo de elitização, não se importa com ele ou, o que é mais provável, não percebe o que está acontecendo bem debaixo dos seus narizes.

Por outro lado, os argumentos daqueles que defendem a privatização do estádio é de que aqueles que a criticam são esquerdistas radicais contrários a qualquer privatização e inimigos do empresariado e da iniciativa privada; ou que não é dever do Estado gerir estádios de futebol. Com a segunda dessas afirmações eu concordo. A minha convicção é a de que o Estado deve garantir à população contribuinte, em primeiro lugar, os serviços básicos: saúde, educação, transporte e, também, lazer. E que, diante da eterna escassez de verbas porque passam Estados e municípios no Brasil, me parece um desperdício o Estado gastar uma parte da verba na manutenção de um Estádio do porte do Maracanã. Os motivos dessa escassez é outra discussão importante, mas que eu também não farei nesse texto. Não sei qual o total que o Estado gasta anualmente para gerir o Maracanã, mas sei que essa verba poderia ser melhor empregada em projetos esportivos que tenham um alcance e uma inclusão muito maior de cidadãos. Assim sendo, não vejo problema algum que todos os estádios de futebol do Brasil passem para a administração da iniciativa privada.

O Maraca nos áureos tempos de maior do mundo

PORÉM... e sempre há um porém, o Maracanã não é um estádio qualquer. E, assim não sendo, requer cuidados especiais no seu processo de privatização. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o Maracanã é um Patrimônio Cultural, tombado em nível federal (pelo IPHAN) e em nível municipal (pela Subprefeitura de Patrimônio Cultural da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde 2000. Não conheço as especificidades dos decretos de tombamento do Estádio, mas sei que essa dupla proteção certamente impõe uma série de restrições tanto ao seu uso quanto à alterações físicas no espaço construído. Restrições essas que, diga-se de passagem, já não estão sendo respeitadas na reforma pela qual passa atualmente o estádio. O fato é que, assim como acontece com o proprietário de qualquer outro imóvel tombado, o proprietário do Maracanã, seja o Estado ou seja um proprietário privado, não poderá (como já não pode) dispor do espaço do Maracanã a seu bel prazer, fazendo e desfazendo de acordo com o que lhe der na telha e desrespeitando a legislação que protege o imóvel. Nesse sentido, qualquer processo de privatização do Maracanã deve levar em consideração os projetos que o candidato a futuro proprietário tem para o Estádio, tendo em visa a sua preservação como Patrimônio Cultural.

Estádio de Atletismo Célio de Barros

Em segundo lugar, é importante ter em mente que o processo de privatização do Maracanã deverá levar em consideração não apenas o Estádio, mas todo o Complexo Desportivo do Maracanã. Que inclui a Pista de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare. Os dois espaços igualmente reformados para a realização do Pan Americano e utilizados para treinamento por centenas de atletas, inclusive por medalhistas olímpicos. Espaços onde, além disso, moradores das comunidades carentes das redondezas e um grande contingente de pessoas da terceira idade podem praticar a atividade física fundamental para a manutenção da sua saúde física e mental. Espaços públicos de lazer que contam com escolinhas de esportes de várias modalidades, onde milhares de moradores do Rio de Janeiro tiveram a oportunidade, assim como eu tive, de dar os seus primeiros passos na prática do esporte. E creio que não é preciso ressaltar aqui o importante papel que a prática de uma atividade esportiva tem na vida de uma criança ou de um pré-adolescente, afastando-o do sedentarismo e de outras atividades que podem ser nocivas à sua saúde. O processo de privatização do Maracanã que se apresenta nesse momento pretende destruir esses importantes equipamentos esportivos, deixando carente o enorme público hoje beneficiado por eles, pela mais simples falta de alternativas para que esse público continue praticando o seu trabalho ou seu lazer.

Parque Aquático Júlio Delamare

Anexos ao Complexo do Maracanã, e igualmente ameaçados pelo processo de privatização que se desenrola, enecontram-se também dois equipamentos culturais: uma escola municipal e um palacete que deveria ser um Museu, mas que estava abandonado pelo poder público há décadas. A Escola Municipal Freidenreich, que no momento mesmo em que escrevo esse texto já deve ter ido ao chão, era considerada a quarta melhor do Estado avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do Inep/ME. E, apesar do prefeito ter afirmado, em reportagem de O Globo de dezembro último, que "o que faz uma escola não é um prédio, mas a dedicação de professores e alunos", ele pode perguntar para qualquer pedagogo e todos lhe dirão que o ambiente físico da escola é sim muito importante no processo de ensino/aprendizagem. Experimente tentar implantar um ensino de excelência em uma escola com instalações precárias. Claro que sempre há os professores que fazem milagres com os poucos recursos que o Estado lhes dá, mas essas são as exceções e não a regra. Infelizmente, o prefeito parece não compreender muito de pedagogia. Mas, também, o que esperar de um prefeito que coloca uma Administradora à frente da Secretaria Municipal de Educação? 


A disputa em torno do Palacete construído ainda no século XIX, antiga propriedade de um comendador do Império, que resolveu construir a sua residência nas imediações do Palácio de São Cristóvão para ficar próximo ao Imperador, foi mais divulgada porque mais indignante. Consta que, ainda na década de 1860, o Palacete teria sido adquirido por Luis Augusto Maria Eudes, Duque de Saxe e genro de D. Pedro II, que doou o espaço à Monarquia para a construção de um centro de investigação da cultura indígena. Em 1910, o Marechal Rondon criou, no mesmo imóvel, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que viria a dar origen à FUNAI. Entre 1953 e 1977, funcionou ali o Museu do Índio, que nessa última data foi transferido para a sua localização atual no bairro de Botafogo (um local onde os índios são proibidos de entrar). A partir de então o Palacete centenário foi abandonado pelo poder público a ponto de chegar quase às ruínas. Inclusive pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural, que nunca conseguiram chegar a um acordo sobre se o imóvel merecia um tombamento ou não. Talvez por questões técnicas ou de atribuição de valor histórico/artístico, talvez pelo próprio estado de degradação em que se encontra o imóvel, ou mesmo por questões burocráticas. De lá prá cá, vários projetos de ocupação do local foram aventados, mas nenhum foi levado adiante. Lembro especialmente de um, mais recente, que era a compra do espaço pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujo campus principal fica instalado a poucos metros dali, para lá instalar a sua Faculdade de Artes. Na época, início dos anos 2000, cheguei a ajudar uma amiga arquiteta no seu projeto de reforma do Palacete para a instalação da Faculdade.

Infelizmente, esses projetos não saíram do papel e o imóvel continuou abandonado, sendo ocupado por índios que reconheciam naquele espaço um local significativo para a preservação da sua cultura. As autoridades só voltaram a olhar para o local quando começou o processo de reforma/privatização do Complexo do Maracanã, e a primeira orientação do governo do Estado não foi reformá-lo e reabri-lo ao público, como Museu do Índio ou com outra função qualquer, mas por o Palacete abaixo para a construção de um... estacionamento (!!!). O mais incrível foi ler nas redes sociais pessoas apoiando a medida e afirmando que o estacionamento iria beneficiar mais gente do que o Museu. Ao ler esse tipo de comentário, fico me perguntando em que outro país do mundo as pessoas acreditam que um estacionamento é mais necessário do que um Museu. É importante ressaltar que é muito comum no Brasil a utilização dessa estratégia por parte do Estado: deixar um imóvel indesejado ruir para poder destruí-lo com a aprovação da opinião pública, que prefere ver um espaço vazio do que uma ruína e entulhos. Resumindo a história, que foi por demais divulgada nos meios de comunicação, depois de muitas manifestações contrárias à demolição do prédio, o governador foi obrigado a recuar da sua intenção inicial e admitiu que o imóvel ficasse no lugar onde está desde meados do século XIX. Porém, apenas o imóvel e não os índios. Ele admitiu finalmente dar um uso de natureza cultural para o espaço, como Museu, mas da Copa e não do Índio. No mês passado, a história teve um desfecho autoritário, com a invasão do prédio pela Polícia Militar para a retirada violenta dos seus moradores.  O Palacete, de construção anterior ao Maracanã ou mesmo ao Derby Club que existia no local antes do Estádio, merecia ao menos o respeito e a preferência de quem chegou primeiro, e conta a história não apenas da ocupação daquele pedaço da cidade (o que já seria muita coisa), mas também a história dos esforços de reconhecimento e preservação da cultura indígena no Brasil.



 O Palacete é hoje o último marco da primitiva ocupação daquele espaço.

Por último, mas não menos importante, qualquer processo de privatização do Maracanã precisa levar em consideração o montante de dinheiro público que já foi gasto na atual reforma do Estádio. Segundo reportagem do Portal UOL, a reforma do Maracanã estava orçada, até fevereiro último, em cerca de R$ 1 bilhão!!!! Não estou informado se, de lá prá cá, já houve outro reajuste do orçamento. Mas é bem provável que sim. Segundo a mesma reportagem, de acordo com o edital de concessão do Complexo Desportivo, publicado naquele mesmo mês pelo governo do Estado, a empresa vencedora terá a concessão do estádio por 35 anos, sendo obrigada a repassar ao Estado R$ 4,5 milhões por ano ao longo desse tempo. Fazendo uma complexa conta de somar, isso dá um total de R$ 153 milhões. O que significa 15% do total que o poder público está gastando com a reforma. Sim, você entendeu bem. A empresa vencedora vai ganhar o direito de explorar o espaço do Maracanã (que não é qualquer espaço) por 35 anos, com a obrigação de devolver ao Estado apenas 15% daquilo que ele gastou com a reforma, e pagando em 35 prestações. Ao contrário do que boa parte dos brasileiros acredita, dinheiro público não é dinheiro de ninguém. É o MEU dinheiro, o SEU dinheiro! É o nosso dinheiro que o governo do Estado está gastando nessa reforma, sem exigir o retorno do empresário que vai explorar o espaço pelos próximos 35 anos.

Para concluir eu queria reafirmar o que eu disse no começo desse texto: eu não sou contrário à privatização do Maracanã. Mas sou contrário à privatização do nosso direito ao lazer e ao esporte, à educação e à cultura. Sou contrário à privatização do espaço público e da cidade. E, sobretudo, sou contrário à privatização do dinheiro que eu pago em impostos todo santo dia. Por isso, sou contrário a este processo de privatização que ora se apresenta para o Maracanã. Privatize-se o estádio, desde que se encontre um interessado que se comprometa a respeitar, a história do estádio e da cidade, respeitando-o como Patrimônio Cultural tombado que é; a preservar em funcionamento os espaços públicos de lazer anexos a ele (Estádio de Atletismo Célio de Barros e Parque Aquático Júlio Delamare); a preservar o prédio da Escola Municipal Friedenreich e o Palacete-Museu, como importantes equipamentos culturais que são (no caso da primeira) e que podem voltar a ser (no caso do segundo); que se comprometa a devolver ao Estado, pelo menos, metade do que ele tem gasto em dinheiro público nessa reforma. Ache um interessado que assuma esses compromissos e demonstre, com isso, respeito pela história da cidade e pela sua população e mostre para ele que, mesmo assim, ele ainda pode ganhar muito dinheiro explorando o Maracanã por 35 anos. E, se isso não for possível que mantenha público o que sempre foi patrimônio público. Patrimônio não de um empresário particular, mas de todos os cariocas.

quinta-feira, 28 de março de 2013

ÁGUAS DE MARÇO


Tradicionalmente no Brasil, com a chegada do mês de março chegam também as chuvas que anunciam o final do verão e a entrada no Outono. E tradicionalmente também, infelizmente, com essas chuvas vem os alagamentos, as enchentes, os deslizamentos de encostas, que assumem proporções de tragédia à medida que os centros urbanos crescem sem nenhum planejamento e sem nenhum controle por parte dos poderes públicos. Mais uma vez nesse ano, como vem acontecendo nos últimos anos, a região serrana do Rio de Janeiro foi assolada por uma enchente que deixou 13 mortos em Petrópolis em um único dia de chuva. É chover no molhado, com o perdão do trocadilho, apontar a irresponsabilidade dos poderes públicos municipais, estadual e Federal nesses casos. O poder público, que já não ordena a ocupação do solo, também não faze nada para, ao menos, remediar os danos causados anualmente pelas chuvas de março ou evitar que essas tragédias anunciadas continuem se repetindo a cada ano como uma tradição bizarra. A perda de centenas de vidas e a destruição de centros urbanos inteiros parece não ser suficiente para sensibilizar as nossas autoridades.

Mas, outro aspecto dessa situação me chama a atenção e me faz refletir. O caso é que, já também tradicionalmente, quando começam as chuvas de março, os meios de comunicação de massa colocam nas pautas dos seus telejornais reportagens a respeito de como se evitar os efeitos mais perigosos dos temporais. São dicas e conselhos que vão dos mais irrealizáveis como abandonar as moradias em área de risco (como se quem morasse em área de risco tivesse outro lugar onde se abrigar), até os mais simples como não jogar lixo nas ruas para que eles não entupam os bueiros e não causem alagamentos e enchentes. O que me chama a atenção é que essas reportagens, geralmente ilustradas com entrevistas com técnicos da Defesa Civil ou outras autoridades no assunto, jogam toda a responsabilidade de se evitar as enchentes em cima dos cidadãos, que são as principais vítimas dessas enchentes. Ou seja, se a sua rua enche e a lama invade a sua casa a culpa é só sua que jogou lixo na rua. Ou em cima de São Pedro que, coitado, não pode nem se defender. Tudo que pode fazer é mandar mais chuva como forma de protesto. Não se discute, nessas reportagens, a responsabilidades do poder público municipal na coleta do lixo que fica espalhado na rua, na realização de obras contra as chuvas (que devem ser realizadas antes do período de chuvas, é óbvio), no controle do uso e ocupação do solo, etc.

E não se discute, sobretudo, a responsabilidade do poder público em outra área que, a princípio pode não parecer, mas está diretamente relacionada a esse tema: na oferta de uma educação pública de qualidade. O fato é que os poderes públicos municipais, estaduais e Federal no Brasil vem sucateando a educação durante, pelo menos, cinco décadas. Primeiro, retirando dos currículos todos os conteúdos críticos, reduzindo a carga horária das aulas de história, geografia, sociologia, e fazendo uma educação cada vez mais técnica que não visava formar cidadãos e sim trabalhadores. Ou melhor, a formar “operários-padrão”, que produzissem bem e reclamassem pouco. E, mais recentemente, mantendo todo o sistema educacional em uma situação da mais extrema penúria de investimentos, onde falta de tudo: desde giz até professores. Esses últimos também deixados em situação de igual penúria, para a qual a única forma de protesto são as constantes greves que dão muito pouco, ou nenhum, resultado. No intuito de evitar a formação de cidadãos críticos e conscientes, que poderiam representar um perigo para os seus interesses, nossos políticos acabaram criando uma massa de semi-analfabetos e analfabetos funcionais que, apesar de passarem 9 a 10 anos na escola para concluir o ensino básico (os que concluem, é óbvio), não sabem sequer escrever na língua pátria. E que são incapazes de relacionar a enchente de hoje com o voto que colocou na urna em outubro passado. É preciso deixar claro, mais uma vez o meu ponto de vista: essas pessoas são vítimas e não culpadas. São vítimas do descaso do Estado em garantir os seus direitos mais básicos. Como o direito à educação gratuita e de qualidade. A questão é que, se as enchentes são causadas pelo lixo jogado na rua e o lixo na rua é causado pela falta de educação da população, então a responsabilidade pelas enchentes, e pelas tragédias que as seguem, continua sendo do Estado.