Vou publicar hoje a última das minhas crônicas antigas que tinha guardadas. Espero conseguir superar logo essa crise criativa e escrever novas crônicas para não deixar esse blog abandonado de novo. Essa crônica é quase uma continuação da anterior. Escrita na mesma época. Logo depois de ter terminado o meu mestrado. O que procurei registrar com uma linguagem pretensamente poética foi, simplesmente, o primeiro churrasco a que compareci depois de quase dois anos de reclusão. Vamos a ele.
REENCONTRO (PARTE 2)
Ele virou a esquina e subiu a ladeira. Conhecia aquele lugar. Eram a
mesma esquina e a mesma ladeira de outras tantas vezes. No fim da ladeira, as
escadas. Também as tinha subido muitas vezes antes. Conhecia o esforço. A
palpitação que provocava, qual uma paixão. O que, ao fim e ao cabo não deixava
de sê-lo. As esquinas, ladeiras, escadas e morros daquela Cidade eram a sua
mais forte e duradoura paixão. A única que atravessava os anos sem arrefecer. Com
um desentendimento aqui, outro ali, e muitos períodos de afastamento, como toda
paixão.
Mas, aquele havia sido o maior de todos. E o cansaço que sentiu ao subir
dessa vez lhe deu bem a noção do tamanho do seu isolamento. O fez sentir no
corpo, literalmente, por quanto tempo esteve ausente. O esforço foi maior não
porque a sua ansiedade o fizesse subi-la correndo. Já havia cometido esse erro
antes e sabia que aquela escadaria tinha que ser galgada sem pressa. Subiu,
mesmo, muito mais lentamente do que nas vezes anteriores. Observando todo o
cenário em volta, que também conhecia bem. Respirando fundo, como que querendo
absorver cada árvore, cada fachada de casa, a lateral da igrejinha no alto da
escada. Querendo ressuscitar as cores já esmaecidas do quadro que guardava na
memória.
Por fim chegou. A casa, as pessoas eram suas velhas conhecidas. Senão
todas, pelo menos a maioria. Com aquela tivera um affair, aquela outra havia sido sua vizinha, por uma terceira havia
sido loucamente apaixonado. Outros tantos foram, por muito tempo, sua companhia
nas incertezas da noite na Cidade. A noite e a Cidade, que a todos unia. Mas da
qual esteve, durante tanto tempo ausente. Lembrava do prazer da companhia
daquelas pessoas. Mas, por algum motivo que não sabia explicar, não conseguiu
senti-lo. Naquele momento eram todos, no mínimo, completos estranhos para ele.
Reconhecia os rostos, e se alegrava com isso. Mas não conseguia ver além
daquelas máscaras. Foi bem recebido. Como um amigo que retorna de uma longa
viagem, o que de fato era afinal. Mas não se sentia à vontade. Sentia-se como
que chegado a um baile que já vai adiantado. Quando a orquestra já cansou de
tocar, os casais já estão formados e não se sabe se haverá uma próxima dança, e
nem quem se pode tirar para bailar.
Fez o óbvio. Isolou-se na multidão para tentar se entender. Abdicou de
interagir e preferiu observar. Então, as coisas perderam a nitidez. A música
que tocava pareceu-lhe um ruído distante e os corpos bailando no espaço estavam
envoltos em uma névoa. Naquele momento olhava para dentro de si mesmo.
Procurava palavras que pudessem exprimir o que sentia. As tinha dentro de si.
Caçava-as. Mas não conseguia encontrá-las. Ao abrir os olhos, não mais do que
de repente deparou-se com ela. Estava ali. Inteirinha à sua frente. Aquela
vista linda que, como um quadro, fazia parte daquele lugar. Cenário que impunha
a sua presença pela sua beleza. Ignorá-lo seria impossível. Por mais esforço
que se fizesse nesse sentido. A impressão que se tinha era a de que, mesmo que
fechássemos os olhos, o continuaríamos vendo. Os telhados, a mata, a chaminé da
fábrica, os morros que cortavam o céu imenso, infinitamente azul, e que como
uma muralha iluminada com múltiplos e minúsculos pontos de luz, fechava todo o
horizonte. Demarcando um limite para a visão, diriam os geógrafos mais afoitos.
Mas, definitivamente não! Aquela vista não tinha limites. Ela se apresentava
toda, inteira, como que nua, à sua retina.
Só então, ao contemplar aquela vista, ele encontrou o que faltava. Ou
melhor, re-encontrou. Reencontrou o que estava perdido dentro de si. O amor que
tinha por aquela Cidade. Continuava linda, a sua eterna amante. E essa
constatação o encheu de uma calma alegria. Aquela alegria que se sente quando
sabemos que, mesmo que agora outras bocas a beijem e outras mãos a afaguem, ela
continua linda como da última vez que a deixamos. Alegria que não se explica,
mas que alguns chamam de amor. E o amor não é, absolutamente egoísta. Se toda
vez que voltasse, ela se apresentasse para ele assim, linda como da última vez,
ele não pediria mais nada. Nem um beijo, nem um abraço. Só queria poder
contemplá-la de longe, em silêncio, uma vez mais.
Ao reencontrar o que sentia, reencontrou tudo o que faltava. Aquele
sentimento a tudo preenchia e a tudo dava sentido. Agora ouvia claramente o
samba, via nitidamente as cabrochas a dançarem e os rapazes a cortejá-las. E
entendia que tudo aquilo era parte daquela que ele amava. Então riu, bebeu,
conversou, bailou, conheceu pessoas, estranhou outras. Brindou ao
(re)nascimento daquele sentimento que nunca morre. Pois, como diz o poeta, o
amor que morre é uma ilusão. O verdadeiro amor, esse, não fenece nunca. Na
manhã seguinte, a escadaria que desceu era outra escadaria, e a sua companhia
era ela. Não a moça nova, cujos encantos o seduziram naquela noite. Mas mesma
de sempre. A Cidade, sua eterna amante.
Agosto de 2006