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domingo, 25 de março de 2012

PRIMEIRO REENCONTRO

Continuando a publicação de crônicas escritas outrora, enquanto a maldita tese não termina (esse finalzinho está pior que tudo...), vou publicar duas que escrevi quando estava terminando o mestrado. Na época, depois de passar dois anos praticamente trancado em casa, estava voltando a sair, voltando a viver. Pensando bem, o contexto de então guarda grandes semelhanças com o atual. Sinto que falta pouco para eu "voltar a viver" novamente. Ou não...


O REENCONTRO

Eram amantes. Mas há muito não se viam. Dizem que brigaram e acabaram por se separar. Mas continuaram próximos. Sem se olhar, porém. Ele, sempre muito atarefado, usava o excesso de trabalho como desculpa para não procurá-la. Até arrumou outra, com quem falava mal dela. Rancores de amante traído. Rusgas e rancores que deixam toda convivência longa e intensa, como foi a deles. Ela, por sua vez, seguiu sua vida. Não mudou seus hábitos. Amanhecia, entardecia e anoitecia como sempre. Quem olhasse de fora diria mesmo que deu de ombros com o fim da relação. Maledicências, porém. Ela apenas esperava. Sabia que a separação era temporária. Sabia que o amor dos dois era mais forte que as rusgas e rancores. Sabia. Com aquela sabedoria que Deus concedeu apenas às mulheres. A algumas.
E assim passaram um bom tempo. Às vezes se esbarravam na rua. No ponto de ônibus, num bar, num fim de tarde à beira da baía. Baixavam, então, os olhos. Ele, por desprezo; ela, por vergonha. Compreendia que não era hora ainda. Ele pensou mesmo em se mudar, para acabar com esses desagradáveis encontros fortuitos. Em ir para onde não mais pensaria nela. Não deu tempo. Ainda pensava nisso quando se reencontraram, mais uma vez. Mas daquela vez foi diferente. Encontraram-se num samba, lá pelos lados da Glória, dizem. O encontro pegou-os desprevenidos, desarmados, dessa vez. Não pensaram em virar a cara ou fugir. Antes, se contemplaram fixamente, porém de longe.
Dessa vez, ele não se aborreceu em encontrá-la. Ela pareceu-lhe, então, tão bonita. Tão bonita como sempre foi. Ele, devido à briga, é que havia esquecido o quão bonita era ela. Foi sua beleza que desarmou-o. Não soube dizer ao certo o que o fez voltar a ver algo de que jamais havia esquecido, mas no que não mais era capaz de reparar. Dizem que foi o choro do bandolim, os eflúvios etílicos da cerveja, naquele sobrado de pedra do início do século, naquela ladeira de paralelepípedos, sob as bênçãos do São Jorge, iluminado pela luz vermelha. O cenário perfeito para um reencontro. Apenas abandonou-se a admirar toda aquela beleza que, de repente, se desnudava ali, em pleno samba, mas somente para ele. Tocava um surdão. A saia branca puxada até o joelho, os cabelos soltos, os ombros nus, a pele morena à mostra. Sorria enquanto tocava, exibindo os dentes grandes e alvos. E sua beleza e fragilidade contrastavam com o tamanho e o peso do instrumento. O que a fez parecer ainda mais bela e mais frágil. Apaixonou-se. Ou, antes, re-apaixonou-se.
Ela, por sua vez, não fez nada mais do que ser o que sempre foi. Bela e frágil. Enquanto tocava, sabia que ele a fitava. Sabia também que não seria necessário nenhuma palavra. Ah! A sabedoria feminina de algumas mulheres. De algumas apenas... No intervalo, já estavam nos braços um do outro. Matando as saudades. Reconciliados. Até a próxima briga. Ele sabia que ela era encantadora demais para ser de uma pessoa só. Sabia que tinha diversos amantes. Mas, naquela noite, ela era só dele. Os homens também são sábios às vezes. Alguns. E saíram os dois flanando ladeira abaixo. A lua por testemunha. Ainda estavam juntos quando o dia amanheceu. Dizem.

  
Março de 2006