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domingo, 12 de fevereiro de 2012

A RUA SEM ALMA

Enquanto continua minha saga para finalizar minha tese, vou publicar mais uma das minhas crônicas antigas. Na verdade, não tenho muitas crônicas antigas para publicar porque alguns anos atrás perdi praticamente todas as minhas crônicas devido a um problema no cd onde eu as armazenava. Devo ter mais umas duas só, além dessa que publico hoje. Essa crônica, se não me falha a memória é mais antiga que a anterior, e teve a honra de ser publicada na Folha do Centro (não sei se ainda existe). Eu me arriscaria a dizer até que ela está um pouco datada. Algumas passagens da crônica denunciam isso.


A Rua Sem Alma
As ruas têm alma, afirmava o cronista João do Rio (1881-1921). O primeiro dos nossos flâneurs, aquele em quem o espírito era mais vagabundo, as curiosidades mais malsãs, dizia que cada rua é um ser vivo e imóvel, com via e destino iguais aos dos homens. E, também como nós, contariam elas com uma individualidade que tem uma fisionomia e uma alma.
Assim, algumas ruas dariam para malandras, outras para austeras, haveria as ruas honestas, as ambíguas, as sinistras, as nobres, as delicadas, as trágicas, as depravadas, as puras, as infames, as guerreiras, as revoltosas, as medrosas, as aristocráticas, as amorosas, as covardes... O nosso amante das ruas, que conhecia cada beco da cidade como se conhece um amigo (quase sempre mal), conseguia desvendar a individualidade de cada rua da sua cidade (que não é a mesma que a nossa).  A rua do Ouvidor era, para ele, fanfarrona; a da Misericórdia, velha e miserável; a das Laranjeiras, conservadora; o Largo do Moura, lúgubre; a Haddock Lobo, burguesa.
Os cariocas hoje, na sua maioria, não amamos mais a rua. Antes as tememos. As ruas todas hoje, para o amedrontado morador da Cidade (ainda) Maravilhosa, são perigosas apenas, e nada mais. Talvez por isso, por influência do espírito do tempo, eu nunca tenha conseguido desvendar a alma das ruas. E isso, apesar de me incluir no pequeno número dos que não as teme, antes as admira. São minhas velhas conhecidas (o que, certamente, é menos do que serem amigas, como eram para João do Rio). Tendo que ir a lugar próximo (ou nem tanto) não me furto o prazer de ir caminhando, interagindo com as ruas, que, para mim, não são só caminhos de passagem obrigatória para o lugar onde pretendo ir. Mesmo assim, às vezes sinto que as ruas, à minha presença, se tornam como que mudas. Hesitam em revelar-me seus segredos, desconfiando da minha amizade.
Assim, credito a essa condição de estrangeiro em sua própria cidade, que caracteriza o carioca da virada do século XX para o XXI, essa dificuldade de comunicação com as ruas. SE até hoje não consegui descobrir que alma tem a rua onde moro há 18 anos, que direi daquelas por onde passei caminhando uma única vez?
Entre estas a Benedito Hipólito, na Cidade Nova. Ligando a Prefeitura (cujo pomposo nome oficial é Centro Administrativo São Sebastião, mas que é conhecido também por outros nomes nem oficiais nem tampouco pomposos) à Central do Brasil, essa rua é, de todas as que conheço, a que mais me dá a impressão de não ter uma alma. Isso porque, caminho árido, vítima do processo de “desurbanização” que criou a Avenida Presidente Vargas e matou o seu entorno, não há nela um único lugar que a caracterize e lhe confira individualidade. Não há nela um único estabelecimento comercial ou imóvel residencial, onde se possa passear vendo vitrines ou admirando a arquitetura. Assim como também não há a sombra de uma árvore, onde um eventual passante possa descansar, fugindo do sol inclemente. Apenas estacionamentos, depósitos de carros e espaços vazios, muitos. Não há nela um único lugar aonde ir, a não ser ao seu fim. O que explica a ínfima quantidade de pedestres que se arriscam a percorrê-la. Não posso admitir que esse vazio que marca hoje a sua individualidade, que neguei frases atrás, seja a característica de sua alma. E ela seja, portanto, não uma rua sem alma, mas uma rua com a alma vazia. Esse artifício não me agrada. Apenas me tira da rota de colisão com João do Rio.
Seus espaços vazios servem a uma função, porém. Necessários que são ao funcionamento, uma vez por ano, da passarela dos desfiles de Escolas de Samba (o Sambódromo), localizada em rua transversal que a corta bem a meio. Estivesse a Benedito Hipólito coalhada de casas, lojas ou edifícios, não poderia ter seu trânsito interrompido para o cercamento do Sambódromo, que a divide em duas partes incomunicáveis durante o reinado momesco. Também não poderia haver nela o espaço hoje conhecido como Terreirão do Samba, onde antigamente se armavam os circos que chegavam à cidade. Espaço do Carnaval popular, a poucos metros daquele outro, hoje reservado, quase que completamente ao usufruto dos turistas. Só então essa rua se enche de gente. Foliões a caminho do espetáculo. Caminhando pelo meio da rua, simbolicamente, na contramão do tráfego cotidiano de automóveis, como que a inverter a ordem natural das coisas. Me dirás então: aí tens a alma dessa rua. Ela é uma rua carnavalesca. Ao que eu respondo: Talvez... Pode mesmo ela ter essa alma misteriosa, que se revela apenas uma vez por ano. Mas hoje, como outrora, quando deveria participar como coadjuvante dos eflúvios momescos que emanavam da falecida Praça Onze, sua vizinha ilustre, berço do Carnaval popular da cidade, ela tem apenas uma alma roubada. Pois mesmo no Carnaval é ela apenas passagem para um outro lugar e não um fim em si mesma como o é, por exemplo, a Avenida Rio Branco. Da mesma forma, tendo sido aquela praça local de intenso comércio e de concentração de cabarés, talvez ela também tenha sido uma rua comercial e boêmia no passado. Quando absorvia o fluxo de pessoas que, da vizinha famosa, vinha ter a ela pelas ruas de Santana e Marquês de Pombal. Mas, hoje em dia todas essas ruas caem no vazio que é a Avenida Presidente Vargas. Território inóspito para flâneurs modernos. E não se chega mais à Benedito Hipólito. Apenas se sai dela para outros lugares.
Festiva, comercial ou boêmia, poderia se dizer também que ela foi uma rua religiosa, devido à solene presença, em uma das suas extremidades, desde 1870, da majestosa Igreja de Santana.  Por ela deveriam passar, bíblia nas mãos, aqueles que se dirigiam à missa, que já foi programa mais concorrido, em tempos idos. Ficaria, então, repleta de gente a conversar, ao fim da concorrida missa de domingo, quando distintas senhoras e suas belas filhas encontrariam outras senhoras igualmente distintas com filhas não menos belas e, conhecidas de há muito, se poriam a combinar almoços na casa de uma ou de outra. Enquanto seus maridos, senhores respeitáveis, conversariam sobre os negócios ou a política dos últimos dias do Império, ou dos primeiros da República. Pessoas que, ao fim de algum tempo de prosa, atravessariam de volta a Benedito Hipólito, em sentido contrário, tornando aos seus lares.
Hoje, porém, a missa já é o programa de domingo preferido das famílias. E, ao fim e ao cabo, a Igreja de Santana está na rua de Santana e não na Benedito Hipólito, e mesmo dá as costas a essa, como que a reprovar ou a censurar aquilo que ela foi um dia, ou ainda é hoje: Rua boêmia, rua carnavalesca, com alma de sambista. Lugar de pensamentos pouco cristãos.
Mas, se por um lado, o passado dessa rua é uma incógnita e, por outro, o seu presente parece ser um grande vazio; pode-se, ao menos, fazer alguma projeção para o seu futuro. A meu ver, continuará ela tendo aquela alma carnavalesca roubada das suas vizinhas, pelo menos enquanto as Escolas de Samba persistirem em cruzá-las uma vez por ano e existir o Terreirão do Samba.
Mas, me arrisco a prever que o seu destino, pelo menos no seu trecho próximo à Igreja de Santana, é o de ser uma rua estudantil. E digo isso pela presença nesse trecho do Centro de Artes Calouste Gulbekian e pela nova Escola Municipal há pouco construída e significativamente batizada de Tia Ciata. Personagem histórico que tinha próxima àquele local a sua residência. Com o intuito de preservar a memória daquele espaço, ao mesmo tempo essa homenagem, como que une o seu passado ao seu futuro. Reforçando a idéia de que o seu presente, pelo menos por enquanto, é um tempo destinado ao esquecimento.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

NOVAS VELHAS CRÔNICAS

Não gosto de ver blogs abandonados. Me dá uma impressão muito ruim. Parece aquelas casas que um dia foram habitadas por famílias numerosas, formadas por pais, filhos, netos, sobrinhos, cachorros... que a enchiam de barulho e vida durante todo o dia, e que aos poucos foram se esvaziando. Os filhos e netos cresceram e mudaram para as suas próprias casas, os avós faleceram, e os pais resolveram mudar para uma casa menor. E agora ela está lá, vazia e silenciosa. Como esse blog...

O problema é que estou em fim de doutorado e passo dias e noites escrevendo tese. Ler e escrever é tudo que faço hoje em dia. No meu tempo livre, a última coisa que penso em fazer é continuar escrevendo. Mesmo que sejam crônicas. Então, para esse blog não ficar completamente abandonado, até eu terminar a tese vou publicar algumas crônicas antigas. Escritas em uma época em que eu ainda escrevia por prazer e não por obrigação. Algumas já devem estar fazendo quase uma década. Pois escrevi quando estava terminando a graduação. Talvez, relendo-as, eu possa recuperar o prazer de escrever ao sentir de novo o clima de uma época mais leve e mais romântica... talvez vocês (se alguém ainda me lê) sintam o mesmo.

Vou começar com uma que, naqueles dias, era meu cartão de visitas. Eu gosto muito dela e foi bastante lida entre os amigos mais chegados.


MÉNAGE À TROIS

Quando o sol aparece no Rio de Janeiro, o primeiro impulso do carioca é correr para a rua. Então, mais do que em qualquer outra situação, a já notória beleza da Cidade se torna comparável a uma obra de arte. Difícil mesmo é ficar entre quatro paredes após contemplar, como se fosse um quadro emoldurado pelas esquadrias da janela, a beleza do azul infinito do céu e do verde vivo da vegetação nos morros da Cidade (nos morros que ainda têm alguma vegetação), iluminados pelo brilho do sol.
Tal impulso não é fruto, em hipótese alguma, da raridade do fenômeno. Leviano seria comparar o Rio de Janeiro à Londres, onde à mais leve visão de um baço raio de sol, correm todos às praças e parques para saudar a visita ilustre e bissexta. Aqui o sol não é visita. Ao aproximar-se o final do ano ele vem para ficar. E só vai embora no ano seguinte. Mas não por isso sua chegada é saudada aqui com menos entusiasmo do que na Inglaterra. É como uma pessoa querida, de quem os mais breves minutos de ausência deixam uma saudade profunda. Corremos, então, para a rua para abraçá-lo como correríamos para abraçar essa pessoa.
O carioca precisa fazer fotossíntese, já disse alguém. Sentir na pele o calor, nem sempre aconchegante, do sol. Sem ver nisso nenhum fim prático que não a própria experiência sensória. Bronzear-se? Sim, cariocas gostam disso. Mas reduzir a esse fim, por demais pragmático, a sua relação com o sol é, no mínimo, falta de imaginação. Lagartear é o termo. Não sei quem o cunhou mas, se não me engano, foi criado em Campinas (essa sim, comparável à Londres), ainda na época da faculdade, quando as noites gélidas eram quase sempre recompensadas por dias de sol. Um sol, a princípio tímido pela manhã, mas que se tornava quase tórrido após o almoço. Lagartear era, então, o esporte favorito. Fazer amor com o sol na grama. Por horas, deitados os dois a contemplar o céu. Os cariocas têm necessidade de sol, como de sexo.
Mas, essa relação do carioca com o sol está longe de ser uma relação egoísta. Ela comporta, e mesmo pede, um terceiro elemento: A Cidade. Cariocas têm a Cidade como o principal vetor de expressão das suas experiências sensórias. Ver a Cidade é, com certeza, a sua experiência preferida. Mas também, ouvir seus sons e seus silêncios; sentir seus cheiros, variados, múltiplos; tocá-la com os pés (ah, os pés... esse órgão do tato por excelência), vendo-a correr (ou mesmo passar devagarinho, o que é muito melhor) por baixo dos nossos pés. E, da mesma forma, que a Cidade é fundamental para a experiência sensória do sol, este é fundamental para as experiências sensórias daquela. Com ele, o Rio se torna mais desfrutável. Cidade mulher? Mais que isso, cidade prostituta. Com seu corpo a dar prazer a outrem. O carioca é amante de sua cidade.
Por isso corremos para a rua. Correr para a praia? Não necessariamente. A praia é, com certeza, o destino considerado em primeiro lugar pelos cariocas, quando do chamado do sol. Ponto de convergência. A maior e mais democrática área de lazer da cidade. Lugar comum, porém. A praia e a frase. E como não me atraem os lugares-comuns, prefiro correr para os morros. Certa vez já expressei essa minha preferência afirmando que a natureza, para mim, é mais verde que azul. Ignorava, então, que os morros não são só verdes. Mas também azuis, pois estão dentro do céu. Assim como as praias não são só azuis, porque o mar é verde também. Digressiono.
Pródiga em praias, a Cidade é também pródiga em morros. Mas um, em particular, comprou camarote cativo no meu coração e de lá assiste ao desfile vida afora das minhas sentimentalidades. Por isso, quando me ouvires falar em correr para os morros, entenda correr para Santa Teresa. Quando saio para andar sem rumo pela cidade, esteja onde estiver, é para lá que as minhas pernas me levam, sem nem mesmo esperar uma ordem minha. Cavalos ensinados sabem para onde levar o coche.
Subo, então, suas ladeiras sinuosas, me deixando enganar por suas curvas, como tantas vezes já me deixei enganar por outras mais perigosas. Os sons da Cidade ficam para trás e o silêncio do caminho é interrompido somente por um ou outro carro que me ultrapassa apressadamente descendo ou subindo, e pela música que me acompanha. Com os olhos no horizonte acima de mim, vejo o reflexo do sol nos trilhos do bonde. E sinto a vida retornar ao seu ritmo certo, que é o ritmo lento e cadenciado da subida de uma ladeira, e não a correria cotidianamente praticada ao nível do mar. Um ritmo que permite a reflexão sobre a vida, e não que vivamos apenas, e que cheguemos ao fim do caminho ainda com fôlego. Permito-me, por vezes, pegar um atalho por uma de suas muitas escadas, apesar de não apreciá-las. As escadas, além de encurtar o caminho, exigem um esforço muito maior do que as ladeiras para serem galgadas. E, ao contrário das ladeiras, as escadas guardam um quê de objetividade pouco lírica. Elas têm um fim (em todos os sentidos) e te levam direto a ele. Ao contrário das ladeiras que, infinitas, são capazes de te levar onde você menos espera, a lugar algum, ou de volta ao ponto de partida.
Lá de cima, juntinho do azul infinito do céu e do verde vivo da vegetação, me distraio a contemplar a cidade. Vista daqui do alto, ela é ainda mais linda, minha amante. Faço, na verdade, como fazem todos os apaixonados. Quem nunca se afastou sorrateiramente da sua amada para contemplá-la em silêncio, de longe? Como que a tentar apreender de uma só vez, num só olhar, toda a sua beleza. É impossível, eu sei. É beleza demais para ser guardada em olhos humanos por mais que breves minutos. Mas não há pecado em querer o impossível. E quem assim procede pode até ser digno de pena, mas nunca de perdão.
E assim a tarde passa. Não uma tarde vazia, mas uma tarde de ócio. O que não são sinônimos, ao contrário do que podem pensar as mentes rasas. O ócio é o pré-requisito dos melhores verbos terminados em “ar” que se pode conjugar: filosofar, criar, amar... Não há poesia sem o ócio. E não há amor sem poesia. E no ócio ficamos até anoitecer, fazendo amor e poesia, os três: eu, o sol e a Cidade.



Outubro de 2003