Enquanto continua minha saga para finalizar minha tese, vou publicar mais uma das minhas crônicas antigas. Na verdade, não tenho muitas crônicas antigas para publicar porque alguns anos atrás perdi praticamente todas as minhas crônicas devido a um problema no cd onde eu as armazenava. Devo ter mais umas duas só, além dessa que publico hoje. Essa crônica, se não me falha a memória é mais antiga que a anterior, e teve a honra de ser publicada na Folha do Centro (não sei se ainda existe). Eu me arriscaria a dizer até que ela está um pouco datada. Algumas passagens da crônica denunciam isso.
A Rua Sem Alma
As ruas têm alma, afirmava o cronista
João do Rio (1881-1921). O primeiro dos nossos flâneurs, aquele em quem o espírito era mais vagabundo, as
curiosidades mais malsãs, dizia que cada rua é um ser vivo e imóvel, com via e
destino iguais aos dos homens. E, também como nós, contariam elas com uma
individualidade que tem uma fisionomia e uma alma.
Assim, algumas ruas dariam para
malandras, outras para austeras, haveria as ruas honestas, as ambíguas, as
sinistras, as nobres, as delicadas, as trágicas, as depravadas, as puras, as
infames, as guerreiras, as revoltosas, as medrosas, as aristocráticas, as
amorosas, as covardes... O nosso amante das ruas, que conhecia cada beco da
cidade como se conhece um amigo (quase sempre mal), conseguia desvendar a
individualidade de cada rua da sua cidade (que não é a mesma que a nossa). A rua do Ouvidor era, para ele, fanfarrona; a
da Misericórdia, velha e miserável; a das Laranjeiras, conservadora; o Largo do
Moura, lúgubre; a Haddock Lobo, burguesa.
Os cariocas hoje, na sua maioria, não
amamos mais a rua. Antes as tememos. As ruas todas hoje, para o amedrontado
morador da Cidade (ainda) Maravilhosa, são perigosas apenas, e nada mais.
Talvez por isso, por influência do espírito do tempo, eu nunca tenha conseguido
desvendar a alma das ruas. E isso, apesar de me incluir no pequeno número dos
que não as teme, antes as admira. São minhas velhas conhecidas (o que,
certamente, é menos do que serem amigas, como eram para João do Rio). Tendo que
ir a lugar próximo (ou nem tanto) não me furto o prazer de ir caminhando,
interagindo com as ruas, que, para mim, não são só caminhos de passagem
obrigatória para o lugar onde pretendo ir. Mesmo assim, às vezes sinto que as
ruas, à minha presença, se tornam como que mudas. Hesitam em revelar-me seus
segredos, desconfiando da minha amizade.
Assim, credito a essa condição de
estrangeiro em sua própria cidade, que caracteriza o carioca da virada do
século XX para o XXI, essa dificuldade de comunicação com as ruas. SE até hoje
não consegui descobrir que alma tem a rua onde moro há 18 anos, que direi
daquelas por onde passei caminhando uma única vez?
Entre estas a Benedito Hipólito, na
Cidade Nova. Ligando a Prefeitura (cujo pomposo nome oficial é Centro
Administrativo São Sebastião, mas que é conhecido também por outros nomes nem
oficiais nem tampouco pomposos) à Central do Brasil, essa rua é, de todas as
que conheço, a que mais me dá a impressão de não ter uma alma. Isso porque,
caminho árido, vítima do processo de “desurbanização” que criou a Avenida
Presidente Vargas e matou o seu entorno, não há nela um único lugar que a
caracterize e lhe confira individualidade. Não há nela um único estabelecimento
comercial ou imóvel residencial, onde se possa passear vendo vitrines ou
admirando a arquitetura. Assim como também não há a sombra de uma árvore, onde
um eventual passante possa descansar, fugindo do sol inclemente. Apenas
estacionamentos, depósitos de carros e espaços vazios, muitos. Não há nela um
único lugar aonde ir, a não ser ao seu fim. O que explica a ínfima quantidade
de pedestres que se arriscam a percorrê-la. Não posso admitir que esse vazio
que marca hoje a sua individualidade, que neguei frases atrás, seja a
característica de sua alma. E ela seja, portanto, não uma rua sem alma, mas uma
rua com a alma vazia. Esse artifício não me agrada. Apenas me tira da rota de
colisão com João do Rio.
Seus espaços vazios servem a uma
função, porém. Necessários que são ao funcionamento, uma vez por ano, da
passarela dos desfiles de Escolas de Samba (o Sambódromo), localizada em rua
transversal que a corta bem a meio. Estivesse a Benedito Hipólito coalhada de
casas, lojas ou edifícios, não poderia ter seu trânsito interrompido para o
cercamento do Sambódromo, que a divide em duas partes incomunicáveis durante o
reinado momesco. Também não poderia haver nela o espaço hoje conhecido como
Terreirão do Samba, onde antigamente se armavam os circos que chegavam à
cidade. Espaço do Carnaval popular, a poucos metros daquele outro, hoje
reservado, quase que completamente ao usufruto dos turistas. Só então essa rua
se enche de gente. Foliões a caminho do espetáculo. Caminhando pelo meio da
rua, simbolicamente, na contramão do tráfego cotidiano de automóveis, como que
a inverter a ordem natural das coisas. Me dirás então: aí tens a alma dessa
rua. Ela é uma rua carnavalesca. Ao que eu respondo: Talvez... Pode mesmo ela
ter essa alma misteriosa, que se revela apenas uma vez por ano. Mas hoje, como
outrora, quando deveria participar como coadjuvante dos eflúvios momescos que
emanavam da falecida Praça Onze, sua vizinha ilustre, berço do Carnaval popular
da cidade, ela tem apenas uma alma roubada. Pois mesmo no Carnaval é ela apenas
passagem para um outro lugar e não um fim em si mesma como o é, por exemplo, a Avenida
Rio Branco. Da mesma forma, tendo sido aquela praça local de intenso comércio e
de concentração de cabarés, talvez ela também tenha sido uma rua comercial e
boêmia no passado. Quando absorvia o fluxo de pessoas que, da vizinha famosa,
vinha ter a ela pelas ruas de Santana e Marquês de Pombal. Mas, hoje em dia
todas essas ruas caem no vazio que é a Avenida Presidente Vargas. Território
inóspito para flâneurs modernos. E
não se chega mais à Benedito Hipólito. Apenas se sai dela para outros lugares.
Festiva, comercial ou boêmia, poderia
se dizer também que ela foi uma rua religiosa, devido à solene presença, em uma
das suas extremidades, desde 1870, da majestosa Igreja de Santana. Por ela deveriam passar, bíblia nas mãos,
aqueles que se dirigiam à missa, que já foi programa mais concorrido, em tempos
idos. Ficaria, então, repleta de gente a conversar, ao fim da concorrida missa
de domingo, quando distintas senhoras e suas belas filhas encontrariam outras
senhoras igualmente distintas com filhas não menos belas e, conhecidas de há
muito, se poriam a combinar almoços na casa de uma ou de outra. Enquanto seus
maridos, senhores respeitáveis, conversariam sobre os negócios ou a política
dos últimos dias do Império, ou dos primeiros da República. Pessoas que, ao fim
de algum tempo de prosa, atravessariam de volta a Benedito Hipólito, em sentido
contrário, tornando aos seus lares.
Hoje, porém, a missa já é o programa
de domingo preferido das famílias. E, ao fim e ao cabo, a Igreja de Santana
está na rua de Santana e não na Benedito Hipólito, e mesmo dá as costas a essa,
como que a reprovar ou a censurar aquilo que ela foi um dia, ou ainda é hoje:
Rua boêmia, rua carnavalesca, com alma de sambista. Lugar de pensamentos pouco
cristãos.
Mas, se por um lado, o passado dessa
rua é uma incógnita e, por outro, o seu presente parece ser um grande vazio;
pode-se, ao menos, fazer alguma projeção para o seu futuro. A meu ver,
continuará ela tendo aquela alma carnavalesca roubada das suas vizinhas, pelo
menos enquanto as Escolas de Samba persistirem em cruzá-las uma vez por ano e
existir o Terreirão do Samba.
Mas, me arrisco a prever que o seu
destino, pelo menos no seu trecho próximo à Igreja de Santana, é o de ser uma
rua estudantil. E digo isso pela presença nesse trecho do Centro de Artes
Calouste Gulbekian e pela nova Escola Municipal há pouco construída e
significativamente batizada de Tia Ciata. Personagem histórico que tinha
próxima àquele local a sua residência. Com o intuito de preservar a memória
daquele espaço, ao mesmo tempo essa homenagem, como que une o seu passado ao
seu futuro. Reforçando a idéia de que o seu presente, pelo menos por enquanto,
é um tempo destinado ao esquecimento.