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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

URBEX

Urbex, ou “exploração urbana”, é o hobby de visitar locais abandonados e ruínas, como fábricas, túneis, catacumbas, linhas de trem e metrô, teatros, cinemas e, até mesmo, cidades inteiras. Alguns praticantes desse tipo de exploração urbana resolveram unir a adrenalina de se aventurar por esses lugares à arte da fotografia. Para chegar a alguns desses lugares, os exploradores tem que, muitas vezes, desrespeitar algumas regras, exceto uma: “não tirar nada além de fotografias e não deixar nada além de pegadas”. Os resultados são imagens impressionantes que mostram que também pode haver beleza na desordem e na decadência; que é possível enxergar arte em cenários destruídos e, por vezes, triste. Interessante perceber como os lugares, ainda que em completa ruína, guardam indicações da sua antiga função. O que nos leva a imaginar como deveriam ser quando estavam em pleno uso. A exploração urbana não deixa de ser uma forma de flanerie moderna.

Qual terá sido o último filme exibido nesse cinema?

Será que saiu algum campeão olímpico dessa piscina?

Capela abandonada

East Side Public Libray, em Detroit



Chernobyl virou uma cidade fantasma após o acidente nuclear em 1986

Vista pela ótica da preservação do Patrimônio Cultural, porém, essa beleza volta a ser tristeza. Entre esses locais abandonados, que hoje são explorados pelos praticantes do Urbex, é muito fácil encontrar construções que, em tempos passados, deveriam fazer parte do patrimônio cultural da cidade ou do país em que estão localizados. O que, outrora, ajudava a preservar e transmitir a história de comunidades e indivíduos, hoje conta a história da decadência dos espaços e, algumas vezes, do descaso com o patrimônio público. Onde um dia houve vida hoje há apenas ruínas. Cada casa que se vai é uma memória que se apaga. 
Se você se interessou pelo assunto, recomendo uma visitinha ao site Urbex Brasil: http://www.urbex.com.br/

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

ASFALTO E PROGRESSO

Quem mora nas grandes capitais e entra em contato com as últimas novidades quase no mesmo momento em que elas surgem, não tem noção da lentidão com que o tempo parece passar nas pequenas e médias cidades do interior do país. Esse sentimento de que o tempo passa mais devagar em cidades menores é, mesmo, o atrativo que leva muitas pessoas a deixarem a correria das megalópoles, atrás de uma melhor qualidade de vida no “interior”. Por vezes, viajando pelo interior tem-se, a impressão de um deslocamento não apenas no espaço, mas também no tempo. Não apenas pela ausência, nessas cidades, de Shopping Centers com lojas de grandes grifes estrangeiras e cinemas 3d, ou de um serviço de internet rápida e outras comodidades que só são encontradas nos grandes centros , mas pela ausência mesma de equipamentos urbanos muito mais prosaicos como, por exemplo, sinais de trânsito. Tudo, nessas cidades, parece apontar para o que consideramos “atraso”.  Mas o que chamamos de “atraso” ou de “progresso” é apenas uma questão de ponto de vista. Algo relativo e não conceitos absolutos. Como pude perceber em viagem pelo interior de Minas Gerais há um tempo atrás.
O ônibus chegou na rodoviária e eu desembarquei. Estava ali só de passagem, em baldeação para outra cidade. Era uma bonita tarde de céu azul e sol ameno e eu tinha uma hora de espera até partir o meu ônibus e eu seguir viagem. Busquei um banco e sentei observando o movimento da rodoviária. Sempre me atraiu esse movimento de pessoas em trânsito, esse clima de chegadas e partidas. Estava imerso em reflexões dessa natureza quando, não mais que de repente, o estouro de fogos quebrou a rotina do centro da cidade e chamou a minha atenção. Aliás, interessante notar como cidades médias e pequenas, por vezes, têm a sua rodoviária (ou a sua parada de ônibus intermunicipais) bem no seu centro. Seria esse um símbolo do rodoviarismo que marca o desenvolvimento das cidades no nosso país? Apenas à medida que as cidades crescem e o trânsito na sua região central começa a ficar confuso, as rodoviárias acabam por ser deslocadas para as suas periferias ou para a proximidade das suas vias de saída... Digressiono. Voltemos aos fogos. Ao quais se uniu logo o barulho de buzinas e de um carro de som. Percebi, então, tratar-se de uma carreata. Não uma carreata qualquer, porém. Os alto-falantes do carro de som anunciavam a mais nova realização da prefeitura local. Era uma carreata oficial, portanto. Com toda a pompa e circunstância que a ocasião requer. O locutor oficial da caravana oficial anunciava do alto do carro de som (oficial) que, por obra do Excelentíssimo Senhor Prefeito, o “progresso” acabava de chegar àquela cidade. E o “progresso” se materializava na forma da nova usina de asfalto que estava sendo instalada na cidade. O locutor berrava a plenos pulmões a quantidade de milímetros cúbicos de asfalto que a nova usina teria a capacidade de produzir e o nome das máquinas que a compunham. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que aquelas mesmas máquinas anunciadas estavam presentes à carreata, tornando-a ainda mais invulgar! Máquinas cujo nome não recordo e cuja função nunca conheci, mas que o tamanho e o peso só permitiam que se movessem muito lentamente, fechando o cortejo. Pouco depois da passagem da carreata do prefeito tomei meu ônibus para fazer a segunda parte da minha viagem. Ao sair da rodoviária, percebi que o trânsito continuava confuso na região devido à passagem da carreata. O ônibus seguiu lentamente pela avenida que parecia ser a principal da cidade, onde a rodoviária estava localizada. Mais adiante, próximo à saída da cidade, reencontramos a caravana. Agora ela passava por um subúrbio formado por ruas de terra e casas de tijolo sem reboco. Pensei que aquela sim era uma região que ia se beneficiar com o “progresso” que aqueles moradores viam passar na porta das suas casas. Mas, imediatamente fiquei me perguntando se aquelas pessoas, em geral famílias humildes que olhavam maravilhadas o tamanho daquelas máquinas, algum dia veriam os benefícios da nova e moderna usina de asfalto da cidade onde moravam.



O resto da minha viagem foi tomado por reflexões sobre o evento que tinha acabado de presenciar. Pensava como é curioso que ainda hoje um prefeito se ache no direito de fazer uma carreata às três horas da tarde de um dia de semana em pleno centro da cidade, perturbando a sua rotina e atrapalhando o seu trânsito, apenas para fazer propaganda da própria administração.  Obviamente que isso é mais comum em cidades do interior, pois poucos seriam os prefeitos malucos o suficiente para embaralhar o já caótico trânsito do centro do Rio ou de São Paulo com uma carreata. A situação se torna ainda mais curiosa quando a propaganda é de alguma ação que teoricamente serviria justamente para melhorar esse mesmo trânsito. A fala do locutor oficial também não saía da minha mente e fiquei pensando como também ainda hoje, em alguns lugares desse país, a chegada do “progresso” é sinônimo da chegada do asfalto, que vem substituir as ruas de terra batida ou de paralelepípedos e facilitar o trânsito de automóveis. O asfalto, que, juntamente com a chegada das montadoras de automóvel, foi símbolo de “progresso” na gestão do presidente Juscelino Kubitschek, há mais de 50 anos atrás. Mas que hoje é o símbolo de um modelo de cidade carro-dependente e do privilégio dado ao transporte rodoviário no nosso país, com todos os problemas de mobilidade e de poluição que esse modelo gera.
Ainda assim, pelo interior do país, o asfalto continua sendo considerado, e apresentado para os moradores, como o “progresso”. É na permanência desse modelo, e não na falta de Shopping Centers e banda larga, que reside o verdadeiro “atraso” das pequenas e médias cidades do interior. “Progresso” seria anunciar a inauguração de um sistema de transporte público trans-modal e integrado, barato e de qualidade, ou a construção de ciclovias. De medidas que permitissem aos moradores dispensar o uso do carro e diminuíssem o engarrafamento no centro das cidades. Assim, se o prefeito resolvesse fazer propaganda das suas realizações pelas ruas, essa forma “atrasada” de fazer política, encontraria as vias mais vazias e não perturbaria a rotina dos moradores.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

NOTAS MENTAIS


Hoje logo cedo, ao entrar na internet para ler meus e-mails, me deparei com a propaganda de uma montadora de automóveis que simulava uma questão de múltipla escolha. A questão era a seguinte: Quanto tempo por dia você passa dentro do seu carro? E as 3 alternativas de resposta eram algo do tipo: a) de 1 a 2 horas; b) de 2 a 3 horas; c) de 3 a 4 horas. A intenção da propaganda era dizer que se você passa tanto tempo dentro do seu carro, você precisa de um carro mais confortável. Provavelmente o carro que estava sendo anunciado. Ao bater os olhos na propaganda já percebi que tinha alguma coisa errada na sua lógica. Parei para pensar e a conclusão a que cheguei foi que, se você passa mais de três horas por dia dentro do seu carro tem alguma coisa muito errada na forma como está sendo conduzida a política de transporte da sua cidade. Seja a sua cidade de que tamanho for, seja qual for a distância entre a origem e o destino da sua viagem, em nome da sua qualidade de vida, é inaceitável que você passe mais de 3 horas em deslocamento! Se você passa mais de três horas dentro do seu carro, você não precisa mudar de carro. Você precisa mudar de cidade! Ou mudar a sua cidade. 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A CIDADE E OS EVENTOS - BENEFÍCIOS OU LEGADOS?


A principal justificativa que tenho visto ser levantada por aqueles que têm apoiado a reeleição do atual prefeito do Rio de Janeiro é o fato de que finalmente agora, depois de muito tempo, o Rio de Janeiro conta com uma administração municipal alinhada com as administrações estadual e federal. Eu consigo compreender perfeitamente esse argumento. Até porque o Rio de Janeiro enfrentou décadas de prefeitos que faziam oposição a governadores e a Presidentes, ou vice-versa, e que por isso não conseguia a liberação de verbas federais para a realização de projetos municipais e estaduais. Segundo essa argumentação, uma administração municipal aliada ao Governo do Estado e à Presidência da República, garantiria o recebimento dessas verbas. A questão é: de que adianta haver esse alinhamento se isso não se reverte em benefícios para a cidade? Essas mesmas pessoas podem argumentar que a realização dos mega-eventos que se aproximam, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, são exemplos de benefícios para a cidade ou que, deixarão no seu “legado” um rastro de benefícios para a cidade. Eu creio que quem defende essa ideia está apenas comprando acriticamente o discurso justificativo dado por aqueles que estão interessados em promover esses eventos tendo em vista não benefícios para a cidade, mas benefícios particulares.


Essas pessoas estão deixando de se perguntar, e portanto deixando de perceber, quem está sendo realmente beneficiado (pelo menos, até o momento) com a realização desses eventos. Quem está se beneficiando com obras que, 2 anos antes da Copa do Mundo e 4 anos antes das Olimpíadas já estão superfaturadas. Me parece que essas pessoas estão pensando nos benefícios para a cidade como algo alheio aos benefícios para os habitantes da cidade. Como benefícios para si, para os moradores do seu bairro, para os moradores das áreas próximas à realização desses eventos. Porém, a cidade não é uma entidade abstrata alheia aos seus habitantes. Perguntar se as ações da administração municipal, tenham elas em vista a realização dos mega-eventos ou não, estão gerando benefícios para a cidade é perguntar se estão gerando benefícios para os seus moradores. Como o carioca tem sido beneficiado pelas medidas que estão sendo tomadas para a realização dos eventos? O carioca tem visto melhorias no sistema de transporte, no sistema de saúde, na democratização do acesso ao lazer e à cultura? Não é isso que temos visto em matérias que alertam para o fato de que morar no Rio está mais caro do que morar em Nova York (http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13343&sid=13#.UDJyCGGyMV8) de que a região metropolitana do Rio é hoje a pior do país em mobilidade urbana (http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12488&sid=148), sem falar em medidas arbitrárias como as remoções de favelas de áreas onde serão realizadas as competições ou de áreas de grande visibilidade da cidade, como os casos da Vila Autódromo e do Morro da Providência (http://www.nytimes.com/2012/08/13/opinion/em-nome-do-futuro-rio-esta-destruindo-o-passado.html?_r=1&ref=opinion). Com certeza, essas não são medidas que estão beneficiando o morador do Rio de Janeiro, por mais que o discurso da administração afirme o contrário ou prometa para o futuro os verdadeiros benefícios desses eventos.
É importante ter em mente que esses benefícios têm que começar a ser sentidos no cotidiano da população agora e não apenas após a realização dos eventos.  Ou então, ficaremos mais uma vez a ver navios a espera do “legado” desses eventos assim como estamos até hoje à espera do “legado” dos Jogos Pan-Americanos realizados no Rio de Janeiro em 2007.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

MOBILIDADE URBANA

Hoje eu quero compartilhar uma matéria do portal PUC-Rio digital que fala sobre mobilidade urbana. Você tem a impressão de que está levando mais tempo do que antes para chegar ao trabalho ou para ir para a casa. A partir dessa matéria você pode ter certeza de que não é só impressão. Não só você, mas todos os cariocas estão perdendo mais tempo das suas vidas no trânsito. Pesquisa do IBGE aponta a região metropolitana do Rio de Janeiro como a pior do país no quesito mobilidade urbana. 

Curiosidade histórica: você sabia que a Avenida Presidente Vargas já foi considerada exageradamente larga na época da sua construção?

Além desse dado, a matéria aborda dados interessantes a respeito das medidas que estão sendo tomadas hoje para melhorar a mobilidade urbana da cidade para os megaeventos que se aproximam. Será que elas atingirão os seus objetivos? Uma cidade com a extensão do Rio, onde você só mora perto do seu trabalho se for muito sortudo (ou se trabalhar em casa) tem que ter uma política de transporte que não se baseie no rodoviarismo.

Confira a matéria no link: 

terça-feira, 24 de julho de 2012

CONSUMIDOR OU CIDADÃO?


Algumas semanas atrás, no jornal local da região onde moro, passou uma reportagem que mostrava como determinado colégio daqui estava ensinando as crianças a serem melhores consumidores. A estratégia pedagógica para isso foi a criação, nesse colégio, de uma moeda fictícia com a qual alunos das primeiras séries do ensino fundamental podiam comprar produtos em um comércio também fictício. Segundo professoras entrevistadas, a intenção é ensinar às crianças o valor do dinheiro, assim como fazê-las conhecer seus direitos como consumidores. Certamente, muitos pais veem essa iniciativa da escola de seus filhos com muito bons olhos. Provavelmente, alguns até mesmo consideram esse tipo de educação muito mais útil para os seus filhos do que as matérias tradicionais como português, história ou geografia. Eu, porém, considero esse tipo de iniciativa uma distorção preocupante daquilo que deveria ser a função primordial da educação: formar cidadãos.
É com muita preocupação que eu percebo que essas duas categorias, consumidor e cidadão, tem se confundido e equiparado cada vez mais na cabeça de algumas pessoas. Fenômeno típico de uma sociedade capitalista, onde a lógica de mercado se faz com que a primeira categoria ganhe mais importância do que a segunda. Para essas pessoas, um consumidor consciente dos seus direitos e deveres é também um cidadão consciente dos seus direitos e deveres. Cunhou-se, inclusive, um termo que fundiu as duas categorias: o consumidor-cidadão. Porém, essa relação não é verdadeira porque essas duas categorias são muito distintas em sua essência. São distintas fundamentalmente, porque a primeira, a de consumidor, é uma categoria eminentemente apolítica. Enquanto a segunda, a de cidadão, é eminentemente política. O consumidor consciente pode, perfeitamente, afirmar que “não gosta de política”, que “não discute política”, que “não se envolve com política” e tantas outras frases parecidas que vemos sendo repetidas cotidianamente por pessoas que, na maioria das vezes, não percebe como a política afeta a sua vida. O cidadão consciente nunca pode afirmar isso. 
Os direitos e deveres do cidadão vão muito além dos direitos e deveres do consumidor. Desde a Grécia Clássica, onde o termo foi cunhado, “cidadão” é aquele indivíduo que está envolvido na gestão da cidade. Da pólis. De onde vem o termo política. E o conceito de cidadania remete ao exercício dos direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando direta ou indiretamente da sua gestão. O cidadão, portanto, é um indivíduo envolvido na política. Ser cidadão, portanto, é envolver-se nos problemas da sua comunidade. Na gestão da cidade. Muitas pessoas podem argumentar que a formação de consumidores conscientes é o primeiro passo para a formação de cidadãos conscientes. Só que, de consumidor para cidadão é preciso realizar um salto que o individualismo crescente das sociedades capitalistas torna cada dia mais difícil. O fato é que o consumidor se preocupa com questões eminentemente individuais e só colateralmente (por assim dizer) coletivas. Ele está, em primeiro lugar, buscando o seu interesse e só secundariamente o interesse de outras pessoas que passam pelo mesmo problema. Porém, mesmo quando atinge o nível coletivo, essas questões são pragmáticas e dizem respeito a uma coletividade muito restrita. Como, por exemplo, quando um grupo de consumidores é afetado por um serviço que deixa de ser prestado. Sanado o problema junto aos órgãos de defesa do consumidor, essa coletividade se desfaz. Enquanto o cidadão se ocupa de questões eminentemente coletivas. O que é, ao fim e ao cabo, a essência mesma da sua natureza política. Ou seja, ele busca o interesse da coletividade, e o seu apenas na medida em que está ele está incluído nessa coletividade. Há aqui uma inversão radical de perspectiva entre uma e outra posição, que alguns indivíduos podem até conseguir realizar, mas que não é uma relação direta nem necessária. 
 A disseminação da ideia de que consumidor e cidadão são a mesma coisa pode levar, no seu extremos, à formação de “cidadãos apolíticos”. O que, por si só, é uma contradição em termos. Mas, vivemos em um tempo de contradições, e essa é muito bem vista por políticos mal intencionados que, assim, podem gerir a cidade como se fosse uma propriedade privada. Tendo como objetivo da sua gestão não os resolver os problemas da coletividade, mas auferir vantagens pessoais. Mascarando interesses particulares por trás de intervenções urbanas que favorecem a ele mesmo e aos seus amigos e parentes empreiteiros em vez da população da cidade. Esse fenômeno não é distante da nossa realidade. Pode parecer ótimo que os prefeitos abram os cofres e executem uma verdadeira avalanche de obras nos anos eleitorais, como o que estamos agora. Mas, vamos parar um momento para pensar quem são os verdadeiros beneficiados com essas obras. Quem elas realmente beneficiam? O pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, tem se referido nas suas entrevistas a uma “cidadania do aplauso”. Onde o cidadão é um mero espectador.  Que assiste, mas não toma parte na gestão da cidade. Onde só resta ao cidadão aplaudir as iniciativas dos gestores da cidade, reduzindo o já restrito papel que a nossa “Democracia” nos reserva. Esse é o “cidadão apolítico”.
A equiparação entre consumidor e cidadão tem outro efeito perverso para o qual é preciso chamar a atenção. É o fato de que em um determinado modelo de sociedade capitalista o que define o seu grau de cidadania é o seu poder de compra. Ou, dito de outra forma, você só é considerado um cidadão de plenos direitos enquanto for também, ou principalmente, um consumidor. O que exclui dos direitos mais básicos de cidadania (vale dizer, o que exclui da cidade) aquela parcela de população que não tem poder de compra. Assim sendo, uma sociedade onde consumidor e cidadãos são a mesma coisa é uma sociedade excludente. Quero crer que as orientadoras pedagógicas, diretoras e professoras daquela escola citada lá no início desse texto não têm a intenção de perpetuar esse modelo de sociedade. Mas, então, elas têm que parar de se preocupar em formar consumidores a voltar a se preocupar em formar cidadãos.



sábado, 21 de julho de 2012

O RIO DE JANEIRO NO TEMPO DO REI

Para quem ainda não sabe, eu tenho um livro publicado. Na verdade, é a minha tese de mestrado, que fala sobre as mudanças que o Rio de Janeiro sofreu para a implantação da Corte portuguesa a partir de 1808. O título é "Entre a Corte e a Cidade: O Rio de Janeiro no tempo do Rei", e foi publicada pela Editora José Olympio em 2008, por ocasião da comemoração dos 200 anos da chegada da família real portuguesa. Diga-se de passagem, aquelas comemorações foram surreais. Nunca se falou e escreveu tanta bobagem sobre um assunto. A ponto de D. João VI virar o "fundador da nacionalidade brasileira". Mas isso é assunto para outra postagem... ou não. Mas, no meio de tanta besteira, salvaram-se alguns bons estudos, publicados na coleção D. João VI no Rio, organizada pela Prefeitura do Rio, da qual o meu livro humildemente faz parte. Para quem gosta do período, recomendo que procure os livros dessa coleção. E vou tomar a liberdade de publicar pequenos trechos do meu livro aqui no blog, de vez em quando.

Jean-Baptiste Debret (1768-1848) - Oficial da corte indo ao Palácio (1822)

A história imita a arte. A documentação da Intendência Geral de Polícia registra uma série de desentendimentos entre o Intendente Paulo Fernandes Vianna e o Juiz do Crime do Bairro de Santa Rita, José da Silva Loureiro Borges, mostrando que, na prática cotidiana da polícia joanina "ordem" e "desordem" podiam ter uma convivência muito mais próxima do que o desejado. O primeiro caso aparece em dois ofícios de Vianna dirigidos àquele Juiz, datados de 9 e 10 de setembro de 1811. Neles, Vianna trata daquilo que parece ser um caso de abuso de autoridade por parte de Loureiro Borges, que mandar afixar, por conta própria, um edital de proibição de armas, para o que ele não tinha autoridade.
Esse seria um caso isolado se o abuso de autoridade por parte de Loureiro Borges não continuasse no ano seguinte, como se pode depreender de outros dois ofícios do Intendente àquele mesmo Magistrado. Tratando agora de um caso mais grave: uma prisão indevida motivada, ao que parece, pela cobiça à mulher do próximo. O próximo, no caso, atendia pelo nome de Elias José dos Santos, que havia sido preso e espoliado por Loureiro Borges, como se percebe do ofício de Fernandes Vianna, datado de 14 de fevereiro de 1812:


“Na prisão que V.M. fez de autoridade própria a Elias José dos Santos, ficou-se V.M. com a besta em que ele ia montado, sela e seus arreios competentes, chapéu, botas e esporas e um lenço em que vinham embrulhados 54$200 réis. E tudo isto é preciso que V.M. mande aqui entregar nesta Secretaria, por isso que são coisas de que se não duvida, e aquela besta tem sido vista a trabalhar ao seu serviço”.

O motivo da prisão de Elias, ao que parece, foi uma mulata, da qual Loureiro Borges também se apropriou e que Vianna pede a devolução em ofício curto e direto datado de duas semanas antes (31 de janeiro de 1812): "Mande V.M. já à minha presença uma mulata que estava no seu sítio de Jacarepaguá, e depois passou para outro do Engenho Velho, por cuja causa foi preso Elias de Tal, que assim preciso ao serviço de S.A.R.". Ordem reiterada no ofício de 14 de fevereiro: "V.M. nunca deu conta da mulata, ficando de apresentar, e eu já soube que até estava na sua chácara da Lagoa, o que sendo certo, repare que é isto outro absurdo em que tem caído quando ainda está pendente a ordem que teve para a apresentar". Escondendo a mulata, fazendo-a peregrinar por suas diversas propriedades, Loureiro Borges tenta safar-se da ordem de apresentá-la ao Intendente.
Pela documentação não é possível saber se a mulata era livre ou escrava, propriedade ou esposa do tal de Elias, ou mesmo se esse e o Juiz do Crime apenas disputavam o seu amor. O caso é que Loureiro Borges, magistrado responsável pela manutenção da ordem, oscila em direção à desordem, no intuito de se apropriar da mulata. Na pessoa e nas atitudes de Loureiro Borges, mais uma vez os dois hemisférios se tocam e interpenetram. A documentação também não dá conta do desfecho do caso. E não temos como saber se a mulata foi realmente apresentada ao Intendente. Dos ofícios de Vianna o que se percebe são os esforços do Intendente em evitar o envolvimento em desordens daqueles que eram os responsáveis por coibi-las. (pp. 250 a 253)


quarta-feira, 18 de julho de 2012

PENSANDO A CIDADE

Hoje eu publico uma matéria que foi originalmente publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional e que nos faz pensar quais são os projetos de cidade que vêm sendo implementados no Rio de Janeiro desde meados do século passado. Como escreve o autor da matéria, um projeto rodoviarista e segregador. Orientação que não mudou até os dias atuais. E nos faz pensar também nas reformas urbanísticas que estão sendo feitas para os mega-eventos que a cidade vai abrigar. Será que essas reformas realmente vão beneficiar os moradores da cidade? Será que é esse o projeto de cidade que nós queremos? Eu sempre afirmei que a Barra da Tijuca é a "negação do urbano" no Rio de Janeiro. Depois de ler essa matéria fiquei ainda mais convencido disso.


Segue o link:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/urbanismo-para-quem




P.S.: O professor Antonio Edmílson Martins Rodrigues, entrevistado na matéria, foi meu professor de História do Rio de Janeiro na graduação e quem me ensinou que pensar a cidade e vivenciá-la são tarefas complementares e inseparáveis.

sábado, 14 de julho de 2012

A VOLTA NA QUADRA


Apesar de não ser minha intenção escrever um blog de memórias, vou me permitir iniciar essa crônica com uma pequena lembrança de infância. A julgar pela minha criação, eu poderia ser classificado como aquilo que é comumente chamado de “criança de apartamento”. Daquelas que jogam bola de gude no tapete da sala, nunca soltaram pipa ou ralaram o joelho andando de bicicleta. Porém, desde muito cedo também tive contato com a rua. Lembro que com seis para sete anos tinha meu grupo de amigos, todos moradores da mesma rua, com quem me reunia diariamente para brincar depois da aula. Às vezes, em dias mais reflexivos que ativos, quando o pique pega ou o futebol não nos atraía, gostávamos de conversar peripateticamente dando a volta na quadra. Então, saíamos andando calmamente da frente dos nossos prédios para direita ou para esquerda (para cima ou para baixo, uma vez que nossa rua era uma ladeira), enquanto debatíamos sobre as grandes questões que ocupavam o cotidiano da nossa infância. Que não deviam ser diferentes das questões que preocupavam qualquer outro garoto da nossa idade. Caminhávamos apenas pelo prazer de ver mudar a paisagem enquanto conversávamos, uma vez que o ponto de chegada era o mesmo da partida. Visto a partir de hoje, poderia dizer que essa foi a minha primeira experiência com o flanar. Não lembro mais quanto tempo levávamos nessa aventura pelos arredores de nossas casas. Não devia ser muito. Mas era, certamente, tempo suficiente para que minha mãe se desse conta da minha ausência e ficasse, desesperadamente, chamando meu nome da janela de casa, sem saber onde me meti.
Essa minha primeira “aventura urbana” serviu não apenas para que eu perdesse, desde cedo, o medo da rua, mas também para que eu desenvolvesse o meu amor pela cidade. Amor que deveria ser cultivado desde cedo por todo mundo. A rua deveria fazer parte do processo de descoberta do mundo da criança, da mesma forma que ela descobre os livros quando está sendo alfabetizada. Sempre me intrigou a falta de intimidade de algumas pessoas com o espaço no qual ela está inserida. Basta pedir uma informação para ver como as pessoas desconhecem a cidade onde vivem. Mas o conhecimento do espaço urbano não é apenas o domínio do mapa da cidade, mas também da vida urbana e de seus personagens. Daqueles atores que estão na rua: o jornaleiro, o carteiro, o mendigo, etc. Por isso, entrar em contato com a rua é entrar em contato com a alteridade que se encontra para além do seu círculo familiar mais íntimo. E esse contato com o outro, travado ainda durante a formação da sua personalidade, pode impedir que a criança seja criada em um “aquário”, cultivando verdades absolutas que não são postas à prova pela falta de trato com o diferente. A “volta na quadra” faz com que a casa e a rua se tornem espaços complementares, em vez de opostos.
À medida que eu crescia, a minha volta na quadra foi ganhando em complexidade. Na adolescência já havia adquirido o hábito de caminhar. Se algum compromisso pudesse ser cumprido à pé, não me passava pela cabeça utilizar qualquer outro meio de transporte. E mesmo por vezes, em tardes ociosas, gostava de caminhar sem destino certo, apenas pelo prazer de conhecer as ruas e seus personagens. Com 15 anos já conhecia a maior parte das ruas do meu bairro, incluindo atalhos, becos e mesmo as ruas sem saída. Conseguia chegar relativamente rápido a qualquer ponto que tivesse que ir: colégio, cinema, casa de amigos, dentista. Bom, para esse último não havia pressa. E, então, meu conhecimento e amor pela rua poderia me fazer escolher o caminho mais longo. Um pouco mais tarde, quando o meu bairro se tornou pequeno, a minha volta na quadra começou a ganhar ares de uma aventura real. Então, tomava um ônibus para outro bairro e descia em um ponto aleatório para repetir ali o mesmo que já havia feito nos arredores de casa. Andava pelas suas ruas, conhecendo os seus caminhos, gravando pontos de referência, entrando em contato com outros tipos urbanos. Essa aventura contava com um componente adicional, que era o seu real desafio: conseguir encontrar o caminho de volta pra casa.   
Talvez devido à minha precoce experiência com a rua, acho curioso, e mesmo problemático, perceber que cada vez mais o individualismo que caracteriza não só a nossa sociedade como o nosso tempo, gera pessoas que não tem o mínimo apreço pelo espaço urbano. Incluindo aí o mínimo apreço pelo contato com o outro. O afastamento da rua, entendido apenas como local de passagem obrigatória, o enclausuramento em casa, tem produzido pessoas cada vez menos aptas à vida em sociedade. Que se fecham em condomínios afastados do centro, cercados por muros e guaritas de segurança, e que apenas espiam a rua através da janela da sua casa ou do seu carro com medo, desconfiança e repulsa. Pessoas que evitam, até mesmo, o contato com os próprios vizinhos e que, quando são obrigados a interagir com o outro, o fazem de má vontade, demonstrando desconhecimento das regras mais básicas de sociabilidade. Essas pessoas têm a ilusão de que podem viver isoladas da cidade. Tem gerado, mais do que isso, cidadãos que não se importam com os problemas da sua cidade. Bastando que haja luz no poste em frente ao seu portão e que a sua rua esteja com o asfalto em condições mínimas de conservação para que ele passe com o seu carro. Esse tipo, que só pode ser chamado de cidadão por um uso muito flexível do termo, não exige do Estado ou do seu candidato a prefeito que ele apresente um projeto de cidade. E vota repetidamente no mesmo charlatão que, ao longo do seu mandato, asfalta três vezes a mesma avenida, afirmando estar realizando “grandes obras de urbanização”. Não percebe que o seu descaso ajuda a tornar a cidade um lugar cada vez pior não só para aqueles que vivem no e do espaço urbano, mas também para ele próprio. Não compreendem que a sua qualidade de vida, tão arduamente buscada pela construção de uma casa confortável e segura, depende de uma cidade igualmente confortável e segura.
A “volta na quadra” não é apenas uma diversão de criança. É uma necessidade. É o que nos faz cidadãos de fato. Não há idade certa para que você coloque a cara portas afora e comece a conhecer a sua vizinhança, seus caminhos, seus pontos de referência, seus personagens e também seus problemas. Não há idade limite para a expansão dos seus horizontes físicos, que deve ser também a expansão dos seus horizontes psicológicos, mentais, intelectuais ou o nome que se queira dar. Basta ter a vontade de começar a andar. Pois, como dizia outro poeta: “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

SE NÃO PUDER FLANAR, VÁ DE ÔNIBUS


Recentemente, o ex-prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, Enrique Peñalosa Londoño, esteve no Brasil e falou uma frase que foi muito reproduzida pelas redes sociais afora (mas, infelizmente, nunca repetida por nenhum prefeito no Brasil). Ele disse algo do tipo: “Uma boa cidade não é aquela em que até os pobres andam de carro, mas aquela em que até os ricos usam transporte público”. Para boa parte da nossa sociedade pode parecer até uma piada de mal gosto que alguém em sã consciência sugira que se dê preferência ao transporte público em vez do transporte particular. E, de fato, o transporte público no Brasil é caótico. A oferta é pequena, é inseguro, desconfortável, não é pontual e, ainda por cima, é caro. É assim porque as empresas que detém a concessão do transporte público hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, de uma forma geral não estão preocupadas em atender à necessidade dos usuários e sim as necessidades dos donos. Que é uma só: ter lucro. Por isso, o investimento no sistema é mínimo. Ônibus e trens circulam em péssimo estado de conservação, gerando quebras e atrasos.
Por isso, quem tem condições opta por comprar um carro. Opção mais do que legítima, uma vez que ninguém pode ficar chegando constantemente atrasado no trabalho porque o ônibus não passou ou porque o metrô estava tão lotado que não dava nem pra entrar. Isso sem contar no grande lobby das montadoras de automóvel, que entopem a televisão de propaganda e nos fazem sonhar em ter nosso próprio carrinho desde que somos bebês. A ponto de os maiores sonhos de consumo do brasileiro médio serem, desde pelo menos a década de 1970, a casa própria e o carro próprio (mas isso é assunto para outro texto). É urgente, porém, que a sociedade brasileira tome a consciência de que se todos continuarmos optando pelo transporte particular as cidades irão parar mais cedo ou mais tarde. Já tem algum tempo que os paulistas experimentam essa verdade. A solução para o deslocamento urbano nas grandes e médias cidades é o transporte coletivo e apenas ele. Bastam duas imagens para se comprovar esse fato. Uma delas reproduz a frase de Londoño.



O fato é que, apesar de todas as dificuldades, ou devido a elas mesmas, nós temos que inverter essa lógica. O brasileiro tem que parar de pensar individualmente e passar a pensar coletivamente. Em vez de ficar juntando dinheiro e, muitas vezes, se endividar irremediavelmente para comprar e manter um carro, tem que começar a exigir um transporte público de qualidade: seguro, pontual, confortável e, se possível, por que não, barato. Tem que começar a exigir que as empresas de transporte melhorem seu serviço. Em um setor que se caracteriza pela inércia, se nós não cobrarmos nunca nada vai mudar. Tem que, principalmente, começar a votar em políticos que estejam realmente comprometidos em resolver os problemas da cidade. E o trânsito talvez seja hoje um dos piores deles. E não em políticos que têm ligações escusas com as empresas de transporte, que ganham dinheiro em cima do monopólio das empresas de ônibus, que as defendem das reivindicações da sociedade e das ações do Ministério Público. Transporte público é serviço de utilidade pública, não pode ser fonte de renda! Eu sei que o texto assumiu um tom panfletário e, até mesmo, com pitadas de utopia. Mas se não deixarmos nosso individualismo de lado e começarmos já a lutar por um transporte público de qualidade, de nada adiantará você ter um carro, pois irá tirar o seu carro da garagem na hora de ir para o trabalho apenas para ficar engarrafado 10 metros adiante.


terça-feira, 10 de julho de 2012

NOTAS MENTAIS


Da última vez em que fui pegar o metrô no Rio notei uma “novidade” nas estações. Escrevi novidade entre aspas porque, na verdade, não sei exatamente há quanto tempo se deu essa mudança. Uma vez que fazia mais de um mês que eu não andava de metrô. Não, não estou me referindo ao preço da passagem, que subiu de novo. Notei, isso sim, que retiraram os relógios das plataformas. Muita gente pode não sentir a mínima falta deles, mas os relógios fazem parte das minhas mais antigas lembranças do metrô. Primeiro eles eram grandes e analógicos. Lembravam os relógios das estações de trem art-decó da década de 1930. Quando o metrô foi privatizado, trocaram por relógios digitais retangulares, muito menos charmosos mas igualmente funcionais. E agora os suportes continuam lá, mas estão vazios. Fico pensando qual terá sido o motivo da mudança. Será que as “cabeças pensantes” (pilhas de aspas aqui) da empresa resolveram tirar os relógios para que os passageiros não fiquem calculando quanto tempo ficam plantados na plataforma esperando o trem? Bom... da última vez que calculei, o intervalo entre os trens era de intermináveis 4 minutos. Mas esse tempo vinha aumentando progressivamente desde que as duas linhas passaram a trafegar no mesmo trilho. Agora é esperar para ver se vão colocar algo no lugar. Talvez uma cabeça de palhaço. Rindo para (dos) usuários. Seria simpático.

domingo, 13 de maio de 2012

PEDAÇOS DE CIDADE

Ainda mais uma vez, vou publicar uma crônica escrita há muito tempo atrás. Apesar de já ter terminado a tese, ainda não consegui focar a cabeça para voltar a pensar em crônicas. Mas, agora é só uma questão de concentração. Essa crônica é um pouco diferente das outras que venho postando. É uma mistura de crônica e pesquisa histórica, sobre um monumento desaparecido do Rio de Janeiro. Dá para notar que ela é um pouco maior e contém muita informação e pouca reflexão. Foi escrita originalmente para ser publicada na coluna Memórias do Centro, da Folha do Centro, um periódico de circulação local que é (ou era. Não sei se ainda existe) distribuído gratuitamente. Essa é a segunda versão da crônica, que contou com algumas pequenas modificações feitas pelo meu grande amigo Felipe Eugênio. Espero que gostem.



Jalousies da Capela? Histórias do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto


Não faz muito, um jornal de grande circulação na cidade publicou o resultado controverso de uma pesquisa, de finalidade duvidosa, que afirmava ser a carioca a mulher mais infiel do Brasil. Verídico ou não tal resultado, o melhor é não querer confirmá-lo, pela boa reputação de maridos, noivos e namorados da Cidade. Mais interessante é notar que tal infidelidade (se a há, é prudente manter a duvida) não é comportamento recente. Em artigo denominado Brasil de todos os Pecados, o professor Ronaldo Vainfas relata casos de traição (condenada, então, como pecado) ocorridos nos tempos do Brasil Colônia. Padres jesuítas e outros cronistas do tempo colonial eram incansáveis em denunciar e lastimar a “dissolução dos costumes”, que grassava na terra.
O que poucos moradores do Rio de Janeiro de hoje sabem é que, justamente nos tempos coloniais já existiu na cidade uma casa de recolhimento destinada a mulheres desonestas que estivessem arrependidas do seu mau passo. Tal era a finalidade do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, inaugurado em 1759, construído ao lado da capela de Nossa Senhora do Parto, erigida 110 anos antes (em 1649) por um carpinteiro mulato de nome João Fernandes. Este acabara de chegar ao Rio, vindo da Ilha da Madeira, trazendo consigo uma imagem daquela santa, e comprou um terreno para dar-lhe casa própria e condigna, construindo-a com os seus recursos e os de seus amigos. Já a construção do Recolhimento começou em 1742, e foi o bispo D. Frei Antonio do Desterro Malheiros que a principiou aplicando, para tanto, 40.000 cruzados deixados por um comerciante de nome Estevão Dias de Oliveira para serem distribuídos a bem da sua alma, depois de satisfeitos certos legados.
Estavam, o Recolhimento e a Capela, situados na Rua dos Ourives, se estendendo da Rua São José à da Assembléia, dando a impressão de formar um só conjunto. A rua dos Ourives ia desde a rua São José até a subida do Morro da Conceição. Antes de ganhar fama como dos Ourives, por nela se concentrarem os artesãos dessa especialidade, no século XVIII, era conhecida como o caminho da Conceição para o Parto (ou vice-versa), devido à existência, em sua extremidade sul, da Capela e do Recolhimento. A abertura da Avenida Rio Branco (1903-1906) a cortou em duas partes, sendo a parte que vai da rua São José à citada Avenida a atual rua Rodrigo Silva, e a que segue da Avenida ao morro da Conceição a atual rua Miguel Couto.
Sobre o aspecto da Capela, Joaquim Manuel de Macedo (romancista, cronista e professor de História do Colégio Pedro II nos tempos do Império) dizia que seu aspecto exterior era triste e sem majestade, afirmando que “a arquitetura não se ocupou dele nem metade de um minuto”. O Recolhimento tinha três pavimentos: o térreo contava com uma portaria ladeada de janelas e diversas oficinas; os 2º e 3º pavimentos tinham, para a rua dos Ourives, 17 e 18 janelas de peitoril (respectivamente); e, para as ruas São José e da Assembléia, duas janelas em cada pavimento.
   Apesar da finalidade de recolher mulheres que perdiam a virgindade em aventuras casuais, que desejassem deixar a perversidade do século para ali reformar os costumes repreensíveis, trocando-os por santo e regular comportamento (nas palavras de Joaquim Manuel de Macedo), não eram somente as arrependidas que entravam para o novo asilo. Macedo e Gastão Cruls (cronista do início do século XX) afirmam que, apesar do Recolhimento ter por fim receber mulheres convertidas ou as que estivessem descontentes com a vida conjugal, quase sempre eram os maridos que não estavam contentes com elas e ali as internavam. Segundo Macedo que lamentáveis abusos misturaram no Recolhimento esposas inocentes com esposas culpadas. Muitos homens se aproveitaram do asilo como uma arma de prepotência e disciplina doméstica, tornando-se aquele uma espécie de casa de correção feminina. Uma espécie de cadeia que fazia medo não só às más esposas como às esposas de maus maridos, e também às moças solteiras filhas de pais enfezados, cabeçudos e prepotentes. Afirma ainda Macedo que não havia fervura de briga de marido e mulher que não se abatesse com o encanto das terríveis palavras: “Olha o Recolhimento do Parto!”. As mulheres, em suas conversas, denominavam-lhe de Recolhimento do Desterro. Não porque ficasse próximo ao morro do Desterro (atual Morro de Santa Teresa), mas porque aquele asilo era, para elas, um desterro. E não só as casadas o maldiziam, mas também as solteiras, pois encerravam-se ali meninas e moças que ainda não haviam chegado na idade de casar a pretexto de irem receber educação moral e religiosa. Tudo isso, fruto da jalousie des hommes, o afrancesamento da palavra pontiaguda e peçonhenta: o ciúme masculino.
Apesar da solicitude do seu fundador que, ainda em seu testamento, legou 100$000 para este asilo, foi ele decaindo por falta de recursos. Porém, o Vice-Rei Luís de Vasconcelos (1779-1790) recuperou o Recolhimento e a Capela a partir de 1787. Segundo Moreira de Azevedo (outro cronista do Império), ainda trabalhava-se no interior da igreja quando o acaso ou o crime deu origem a um incêndio, nas primeiras horas do dia 24 de agosto de 1789, o qual consumiu a igreja e teria destruído também o Recolhimento se não fossem as prontas e enérgicas providências do Vice-Rei. Apenas extinto o fogo, cuidou ele em reconstruir os edifícios incendiados, encarregando da direção da obra ao Mestre Valentim da Fonseca e Silva (o mesmo que construiu o chafariz da Pirâmide, até hoje existente na Praça XV). Concluindo-se a reedificação em 3 meses e 17 dias, em 8 de dezembro do mesmo ano voltaram as recolhidas (que estavam abrigadas no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência) em procissão para a sua casa, acompanhando a imagem de Nossa Senhora do Parto, a única que se salvara das chamas.

O incêndio do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, em pintura de Francisco Muzzi de 1789.

A partir de 1812, foi extinto o Recolhimento e foram as recolhidas transferidas para a Santa Casa de Misericórdia. Seu prédio transformou-se em Hospital da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Isso porque, chegando ao Rio de Janeiro em 1808, a Família Real Portuguesa solicitou o pavimento superior do edifício do Convento do Carmo, onde ficava o Hospital, para acomodar a Biblioteca do Palácio da Ajuda, que havia sido trazida de Portugal. Mas, sendo insuficiente apenas o pavimento superior, em Aviso de 3 de novembro de 1812, mandou o Governo desocupar o prédio do Recolhimento do Parto e determinou que a Ordem do Carmo mudasse para ali os doentes, deixando vazio também o pavimento térreo do Convento.
Em 1870, quando Moreira de Azevedo publicou sua obra, o edifício era ocupado pela Inspetoria de Instrução Pública, pelo Arquivo Público e pelo Instituto Vacínico. Foi, por fim, demolido em 1906, para o alargamento da rua da Assembléia, durante as reformas urbanas do prefeito Francisco Pereira Passos. Já então, os costumes eram outros e as mulheres que havendo pecado mundo, não careciam mais de ir, na solidão, suplicar ao céu o perdão e o esquecimento de suas faltas. Imaginaram um novo fim para a Capitu de Machado, não? Eu também. E ela escapou por pouco, pouquinho...

A capela de Nossa Senhora do Parto fica hoje no interior do prédio na rua Rodrigo Silva localizado onde antes existiam o Recolhimento e a Capela.

domingo, 1 de abril de 2012

SEGUNDO REENCONTRO

Vou publicar hoje a última das minhas crônicas antigas que tinha guardadas. Espero conseguir superar logo essa crise criativa e escrever novas crônicas para não deixar esse blog abandonado de novo. Essa crônica é quase uma continuação da anterior. Escrita na mesma época. Logo depois de ter terminado o meu mestrado. O que procurei registrar com uma linguagem pretensamente poética foi, simplesmente, o primeiro churrasco a que compareci depois de quase dois anos de reclusão. Vamos a ele.



REENCONTRO (PARTE 2)

Ele virou a esquina e subiu a ladeira. Conhecia aquele lugar. Eram a mesma esquina e a mesma ladeira de outras tantas vezes. No fim da ladeira, as escadas. Também as tinha subido muitas vezes antes. Conhecia o esforço. A palpitação que provocava, qual uma paixão. O que, ao fim e ao cabo não deixava de sê-lo. As esquinas, ladeiras, escadas e morros daquela Cidade eram a sua mais forte e duradoura paixão. A única que atravessava os anos sem arrefecer. Com um desentendimento aqui, outro ali, e muitos períodos de afastamento, como toda paixão.
Mas, aquele havia sido o maior de todos. E o cansaço que sentiu ao subir dessa vez lhe deu bem a noção do tamanho do seu isolamento. O fez sentir no corpo, literalmente, por quanto tempo esteve ausente. O esforço foi maior não porque a sua ansiedade o fizesse subi-la correndo. Já havia cometido esse erro antes e sabia que aquela escadaria tinha que ser galgada sem pressa. Subiu, mesmo, muito mais lentamente do que nas vezes anteriores. Observando todo o cenário em volta, que também conhecia bem. Respirando fundo, como que querendo absorver cada árvore, cada fachada de casa, a lateral da igrejinha no alto da escada. Querendo ressuscitar as cores já esmaecidas do quadro que guardava na memória.
Por fim chegou. A casa, as pessoas eram suas velhas conhecidas. Senão todas, pelo menos a maioria. Com aquela tivera um affair, aquela outra havia sido sua vizinha, por uma terceira havia sido loucamente apaixonado. Outros tantos foram, por muito tempo, sua companhia nas incertezas da noite na Cidade. A noite e a Cidade, que a todos unia. Mas da qual esteve, durante tanto tempo ausente. Lembrava do prazer da companhia daquelas pessoas. Mas, por algum motivo que não sabia explicar, não conseguiu senti-lo. Naquele momento eram todos, no mínimo, completos estranhos para ele. Reconhecia os rostos, e se alegrava com isso. Mas não conseguia ver além daquelas máscaras. Foi bem recebido. Como um amigo que retorna de uma longa viagem, o que de fato era afinal. Mas não se sentia à vontade. Sentia-se como que chegado a um baile que já vai adiantado. Quando a orquestra já cansou de tocar, os casais já estão formados e não se sabe se haverá uma próxima dança, e nem quem se pode tirar para bailar.
Fez o óbvio. Isolou-se na multidão para tentar se entender. Abdicou de interagir e preferiu observar. Então, as coisas perderam a nitidez. A música que tocava pareceu-lhe um ruído distante e os corpos bailando no espaço estavam envoltos em uma névoa. Naquele momento olhava para dentro de si mesmo. Procurava palavras que pudessem exprimir o que sentia. As tinha dentro de si. Caçava-as. Mas não conseguia encontrá-las. Ao abrir os olhos, não mais do que de repente deparou-se com ela. Estava ali. Inteirinha à sua frente. Aquela vista linda que, como um quadro, fazia parte daquele lugar. Cenário que impunha a sua presença pela sua beleza. Ignorá-lo seria impossível. Por mais esforço que se fizesse nesse sentido. A impressão que se tinha era a de que, mesmo que fechássemos os olhos, o continuaríamos vendo. Os telhados, a mata, a chaminé da fábrica, os morros que cortavam o céu imenso, infinitamente azul, e que como uma muralha iluminada com múltiplos e minúsculos pontos de luz, fechava todo o horizonte. Demarcando um limite para a visão, diriam os geógrafos mais afoitos. Mas, definitivamente não! Aquela vista não tinha limites. Ela se apresentava toda, inteira, como que nua, à sua retina.
Só então, ao contemplar aquela vista, ele encontrou o que faltava. Ou melhor, re-encontrou. Reencontrou o que estava perdido dentro de si. O amor que tinha por aquela Cidade. Continuava linda, a sua eterna amante. E essa constatação o encheu de uma calma alegria. Aquela alegria que se sente quando sabemos que, mesmo que agora outras bocas a beijem e outras mãos a afaguem, ela continua linda como da última vez que a deixamos. Alegria que não se explica, mas que alguns chamam de amor. E o amor não é, absolutamente egoísta. Se toda vez que voltasse, ela se apresentasse para ele assim, linda como da última vez, ele não pediria mais nada. Nem um beijo, nem um abraço. Só queria poder contemplá-la de longe, em silêncio, uma vez mais.
Ao reencontrar o que sentia, reencontrou tudo o que faltava. Aquele sentimento a tudo preenchia e a tudo dava sentido. Agora ouvia claramente o samba, via nitidamente as cabrochas a dançarem e os rapazes a cortejá-las. E entendia que tudo aquilo era parte daquela que ele amava. Então riu, bebeu, conversou, bailou, conheceu pessoas, estranhou outras. Brindou ao (re)nascimento daquele sentimento que nunca morre. Pois, como diz o poeta, o amor que morre é uma ilusão. O verdadeiro amor, esse, não fenece nunca. Na manhã seguinte, a escadaria que desceu era outra escadaria, e a sua companhia era ela. Não a moça nova, cujos encantos o seduziram naquela noite. Mas mesma de sempre. A Cidade, sua eterna amante.



Agosto de 2006

domingo, 25 de março de 2012

PRIMEIRO REENCONTRO

Continuando a publicação de crônicas escritas outrora, enquanto a maldita tese não termina (esse finalzinho está pior que tudo...), vou publicar duas que escrevi quando estava terminando o mestrado. Na época, depois de passar dois anos praticamente trancado em casa, estava voltando a sair, voltando a viver. Pensando bem, o contexto de então guarda grandes semelhanças com o atual. Sinto que falta pouco para eu "voltar a viver" novamente. Ou não...


O REENCONTRO

Eram amantes. Mas há muito não se viam. Dizem que brigaram e acabaram por se separar. Mas continuaram próximos. Sem se olhar, porém. Ele, sempre muito atarefado, usava o excesso de trabalho como desculpa para não procurá-la. Até arrumou outra, com quem falava mal dela. Rancores de amante traído. Rusgas e rancores que deixam toda convivência longa e intensa, como foi a deles. Ela, por sua vez, seguiu sua vida. Não mudou seus hábitos. Amanhecia, entardecia e anoitecia como sempre. Quem olhasse de fora diria mesmo que deu de ombros com o fim da relação. Maledicências, porém. Ela apenas esperava. Sabia que a separação era temporária. Sabia que o amor dos dois era mais forte que as rusgas e rancores. Sabia. Com aquela sabedoria que Deus concedeu apenas às mulheres. A algumas.
E assim passaram um bom tempo. Às vezes se esbarravam na rua. No ponto de ônibus, num bar, num fim de tarde à beira da baía. Baixavam, então, os olhos. Ele, por desprezo; ela, por vergonha. Compreendia que não era hora ainda. Ele pensou mesmo em se mudar, para acabar com esses desagradáveis encontros fortuitos. Em ir para onde não mais pensaria nela. Não deu tempo. Ainda pensava nisso quando se reencontraram, mais uma vez. Mas daquela vez foi diferente. Encontraram-se num samba, lá pelos lados da Glória, dizem. O encontro pegou-os desprevenidos, desarmados, dessa vez. Não pensaram em virar a cara ou fugir. Antes, se contemplaram fixamente, porém de longe.
Dessa vez, ele não se aborreceu em encontrá-la. Ela pareceu-lhe, então, tão bonita. Tão bonita como sempre foi. Ele, devido à briga, é que havia esquecido o quão bonita era ela. Foi sua beleza que desarmou-o. Não soube dizer ao certo o que o fez voltar a ver algo de que jamais havia esquecido, mas no que não mais era capaz de reparar. Dizem que foi o choro do bandolim, os eflúvios etílicos da cerveja, naquele sobrado de pedra do início do século, naquela ladeira de paralelepípedos, sob as bênçãos do São Jorge, iluminado pela luz vermelha. O cenário perfeito para um reencontro. Apenas abandonou-se a admirar toda aquela beleza que, de repente, se desnudava ali, em pleno samba, mas somente para ele. Tocava um surdão. A saia branca puxada até o joelho, os cabelos soltos, os ombros nus, a pele morena à mostra. Sorria enquanto tocava, exibindo os dentes grandes e alvos. E sua beleza e fragilidade contrastavam com o tamanho e o peso do instrumento. O que a fez parecer ainda mais bela e mais frágil. Apaixonou-se. Ou, antes, re-apaixonou-se.
Ela, por sua vez, não fez nada mais do que ser o que sempre foi. Bela e frágil. Enquanto tocava, sabia que ele a fitava. Sabia também que não seria necessário nenhuma palavra. Ah! A sabedoria feminina de algumas mulheres. De algumas apenas... No intervalo, já estavam nos braços um do outro. Matando as saudades. Reconciliados. Até a próxima briga. Ele sabia que ela era encantadora demais para ser de uma pessoa só. Sabia que tinha diversos amantes. Mas, naquela noite, ela era só dele. Os homens também são sábios às vezes. Alguns. E saíram os dois flanando ladeira abaixo. A lua por testemunha. Ainda estavam juntos quando o dia amanheceu. Dizem.

  
Março de 2006

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A RUA SEM ALMA

Enquanto continua minha saga para finalizar minha tese, vou publicar mais uma das minhas crônicas antigas. Na verdade, não tenho muitas crônicas antigas para publicar porque alguns anos atrás perdi praticamente todas as minhas crônicas devido a um problema no cd onde eu as armazenava. Devo ter mais umas duas só, além dessa que publico hoje. Essa crônica, se não me falha a memória é mais antiga que a anterior, e teve a honra de ser publicada na Folha do Centro (não sei se ainda existe). Eu me arriscaria a dizer até que ela está um pouco datada. Algumas passagens da crônica denunciam isso.


A Rua Sem Alma
As ruas têm alma, afirmava o cronista João do Rio (1881-1921). O primeiro dos nossos flâneurs, aquele em quem o espírito era mais vagabundo, as curiosidades mais malsãs, dizia que cada rua é um ser vivo e imóvel, com via e destino iguais aos dos homens. E, também como nós, contariam elas com uma individualidade que tem uma fisionomia e uma alma.
Assim, algumas ruas dariam para malandras, outras para austeras, haveria as ruas honestas, as ambíguas, as sinistras, as nobres, as delicadas, as trágicas, as depravadas, as puras, as infames, as guerreiras, as revoltosas, as medrosas, as aristocráticas, as amorosas, as covardes... O nosso amante das ruas, que conhecia cada beco da cidade como se conhece um amigo (quase sempre mal), conseguia desvendar a individualidade de cada rua da sua cidade (que não é a mesma que a nossa).  A rua do Ouvidor era, para ele, fanfarrona; a da Misericórdia, velha e miserável; a das Laranjeiras, conservadora; o Largo do Moura, lúgubre; a Haddock Lobo, burguesa.
Os cariocas hoje, na sua maioria, não amamos mais a rua. Antes as tememos. As ruas todas hoje, para o amedrontado morador da Cidade (ainda) Maravilhosa, são perigosas apenas, e nada mais. Talvez por isso, por influência do espírito do tempo, eu nunca tenha conseguido desvendar a alma das ruas. E isso, apesar de me incluir no pequeno número dos que não as teme, antes as admira. São minhas velhas conhecidas (o que, certamente, é menos do que serem amigas, como eram para João do Rio). Tendo que ir a lugar próximo (ou nem tanto) não me furto o prazer de ir caminhando, interagindo com as ruas, que, para mim, não são só caminhos de passagem obrigatória para o lugar onde pretendo ir. Mesmo assim, às vezes sinto que as ruas, à minha presença, se tornam como que mudas. Hesitam em revelar-me seus segredos, desconfiando da minha amizade.
Assim, credito a essa condição de estrangeiro em sua própria cidade, que caracteriza o carioca da virada do século XX para o XXI, essa dificuldade de comunicação com as ruas. SE até hoje não consegui descobrir que alma tem a rua onde moro há 18 anos, que direi daquelas por onde passei caminhando uma única vez?
Entre estas a Benedito Hipólito, na Cidade Nova. Ligando a Prefeitura (cujo pomposo nome oficial é Centro Administrativo São Sebastião, mas que é conhecido também por outros nomes nem oficiais nem tampouco pomposos) à Central do Brasil, essa rua é, de todas as que conheço, a que mais me dá a impressão de não ter uma alma. Isso porque, caminho árido, vítima do processo de “desurbanização” que criou a Avenida Presidente Vargas e matou o seu entorno, não há nela um único lugar que a caracterize e lhe confira individualidade. Não há nela um único estabelecimento comercial ou imóvel residencial, onde se possa passear vendo vitrines ou admirando a arquitetura. Assim como também não há a sombra de uma árvore, onde um eventual passante possa descansar, fugindo do sol inclemente. Apenas estacionamentos, depósitos de carros e espaços vazios, muitos. Não há nela um único lugar aonde ir, a não ser ao seu fim. O que explica a ínfima quantidade de pedestres que se arriscam a percorrê-la. Não posso admitir que esse vazio que marca hoje a sua individualidade, que neguei frases atrás, seja a característica de sua alma. E ela seja, portanto, não uma rua sem alma, mas uma rua com a alma vazia. Esse artifício não me agrada. Apenas me tira da rota de colisão com João do Rio.
Seus espaços vazios servem a uma função, porém. Necessários que são ao funcionamento, uma vez por ano, da passarela dos desfiles de Escolas de Samba (o Sambódromo), localizada em rua transversal que a corta bem a meio. Estivesse a Benedito Hipólito coalhada de casas, lojas ou edifícios, não poderia ter seu trânsito interrompido para o cercamento do Sambódromo, que a divide em duas partes incomunicáveis durante o reinado momesco. Também não poderia haver nela o espaço hoje conhecido como Terreirão do Samba, onde antigamente se armavam os circos que chegavam à cidade. Espaço do Carnaval popular, a poucos metros daquele outro, hoje reservado, quase que completamente ao usufruto dos turistas. Só então essa rua se enche de gente. Foliões a caminho do espetáculo. Caminhando pelo meio da rua, simbolicamente, na contramão do tráfego cotidiano de automóveis, como que a inverter a ordem natural das coisas. Me dirás então: aí tens a alma dessa rua. Ela é uma rua carnavalesca. Ao que eu respondo: Talvez... Pode mesmo ela ter essa alma misteriosa, que se revela apenas uma vez por ano. Mas hoje, como outrora, quando deveria participar como coadjuvante dos eflúvios momescos que emanavam da falecida Praça Onze, sua vizinha ilustre, berço do Carnaval popular da cidade, ela tem apenas uma alma roubada. Pois mesmo no Carnaval é ela apenas passagem para um outro lugar e não um fim em si mesma como o é, por exemplo, a Avenida Rio Branco. Da mesma forma, tendo sido aquela praça local de intenso comércio e de concentração de cabarés, talvez ela também tenha sido uma rua comercial e boêmia no passado. Quando absorvia o fluxo de pessoas que, da vizinha famosa, vinha ter a ela pelas ruas de Santana e Marquês de Pombal. Mas, hoje em dia todas essas ruas caem no vazio que é a Avenida Presidente Vargas. Território inóspito para flâneurs modernos. E não se chega mais à Benedito Hipólito. Apenas se sai dela para outros lugares.
Festiva, comercial ou boêmia, poderia se dizer também que ela foi uma rua religiosa, devido à solene presença, em uma das suas extremidades, desde 1870, da majestosa Igreja de Santana.  Por ela deveriam passar, bíblia nas mãos, aqueles que se dirigiam à missa, que já foi programa mais concorrido, em tempos idos. Ficaria, então, repleta de gente a conversar, ao fim da concorrida missa de domingo, quando distintas senhoras e suas belas filhas encontrariam outras senhoras igualmente distintas com filhas não menos belas e, conhecidas de há muito, se poriam a combinar almoços na casa de uma ou de outra. Enquanto seus maridos, senhores respeitáveis, conversariam sobre os negócios ou a política dos últimos dias do Império, ou dos primeiros da República. Pessoas que, ao fim de algum tempo de prosa, atravessariam de volta a Benedito Hipólito, em sentido contrário, tornando aos seus lares.
Hoje, porém, a missa já é o programa de domingo preferido das famílias. E, ao fim e ao cabo, a Igreja de Santana está na rua de Santana e não na Benedito Hipólito, e mesmo dá as costas a essa, como que a reprovar ou a censurar aquilo que ela foi um dia, ou ainda é hoje: Rua boêmia, rua carnavalesca, com alma de sambista. Lugar de pensamentos pouco cristãos.
Mas, se por um lado, o passado dessa rua é uma incógnita e, por outro, o seu presente parece ser um grande vazio; pode-se, ao menos, fazer alguma projeção para o seu futuro. A meu ver, continuará ela tendo aquela alma carnavalesca roubada das suas vizinhas, pelo menos enquanto as Escolas de Samba persistirem em cruzá-las uma vez por ano e existir o Terreirão do Samba.
Mas, me arrisco a prever que o seu destino, pelo menos no seu trecho próximo à Igreja de Santana, é o de ser uma rua estudantil. E digo isso pela presença nesse trecho do Centro de Artes Calouste Gulbekian e pela nova Escola Municipal há pouco construída e significativamente batizada de Tia Ciata. Personagem histórico que tinha próxima àquele local a sua residência. Com o intuito de preservar a memória daquele espaço, ao mesmo tempo essa homenagem, como que une o seu passado ao seu futuro. Reforçando a idéia de que o seu presente, pelo menos por enquanto, é um tempo destinado ao esquecimento.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

NOVAS VELHAS CRÔNICAS

Não gosto de ver blogs abandonados. Me dá uma impressão muito ruim. Parece aquelas casas que um dia foram habitadas por famílias numerosas, formadas por pais, filhos, netos, sobrinhos, cachorros... que a enchiam de barulho e vida durante todo o dia, e que aos poucos foram se esvaziando. Os filhos e netos cresceram e mudaram para as suas próprias casas, os avós faleceram, e os pais resolveram mudar para uma casa menor. E agora ela está lá, vazia e silenciosa. Como esse blog...

O problema é que estou em fim de doutorado e passo dias e noites escrevendo tese. Ler e escrever é tudo que faço hoje em dia. No meu tempo livre, a última coisa que penso em fazer é continuar escrevendo. Mesmo que sejam crônicas. Então, para esse blog não ficar completamente abandonado, até eu terminar a tese vou publicar algumas crônicas antigas. Escritas em uma época em que eu ainda escrevia por prazer e não por obrigação. Algumas já devem estar fazendo quase uma década. Pois escrevi quando estava terminando a graduação. Talvez, relendo-as, eu possa recuperar o prazer de escrever ao sentir de novo o clima de uma época mais leve e mais romântica... talvez vocês (se alguém ainda me lê) sintam o mesmo.

Vou começar com uma que, naqueles dias, era meu cartão de visitas. Eu gosto muito dela e foi bastante lida entre os amigos mais chegados.


MÉNAGE À TROIS

Quando o sol aparece no Rio de Janeiro, o primeiro impulso do carioca é correr para a rua. Então, mais do que em qualquer outra situação, a já notória beleza da Cidade se torna comparável a uma obra de arte. Difícil mesmo é ficar entre quatro paredes após contemplar, como se fosse um quadro emoldurado pelas esquadrias da janela, a beleza do azul infinito do céu e do verde vivo da vegetação nos morros da Cidade (nos morros que ainda têm alguma vegetação), iluminados pelo brilho do sol.
Tal impulso não é fruto, em hipótese alguma, da raridade do fenômeno. Leviano seria comparar o Rio de Janeiro à Londres, onde à mais leve visão de um baço raio de sol, correm todos às praças e parques para saudar a visita ilustre e bissexta. Aqui o sol não é visita. Ao aproximar-se o final do ano ele vem para ficar. E só vai embora no ano seguinte. Mas não por isso sua chegada é saudada aqui com menos entusiasmo do que na Inglaterra. É como uma pessoa querida, de quem os mais breves minutos de ausência deixam uma saudade profunda. Corremos, então, para a rua para abraçá-lo como correríamos para abraçar essa pessoa.
O carioca precisa fazer fotossíntese, já disse alguém. Sentir na pele o calor, nem sempre aconchegante, do sol. Sem ver nisso nenhum fim prático que não a própria experiência sensória. Bronzear-se? Sim, cariocas gostam disso. Mas reduzir a esse fim, por demais pragmático, a sua relação com o sol é, no mínimo, falta de imaginação. Lagartear é o termo. Não sei quem o cunhou mas, se não me engano, foi criado em Campinas (essa sim, comparável à Londres), ainda na época da faculdade, quando as noites gélidas eram quase sempre recompensadas por dias de sol. Um sol, a princípio tímido pela manhã, mas que se tornava quase tórrido após o almoço. Lagartear era, então, o esporte favorito. Fazer amor com o sol na grama. Por horas, deitados os dois a contemplar o céu. Os cariocas têm necessidade de sol, como de sexo.
Mas, essa relação do carioca com o sol está longe de ser uma relação egoísta. Ela comporta, e mesmo pede, um terceiro elemento: A Cidade. Cariocas têm a Cidade como o principal vetor de expressão das suas experiências sensórias. Ver a Cidade é, com certeza, a sua experiência preferida. Mas também, ouvir seus sons e seus silêncios; sentir seus cheiros, variados, múltiplos; tocá-la com os pés (ah, os pés... esse órgão do tato por excelência), vendo-a correr (ou mesmo passar devagarinho, o que é muito melhor) por baixo dos nossos pés. E, da mesma forma, que a Cidade é fundamental para a experiência sensória do sol, este é fundamental para as experiências sensórias daquela. Com ele, o Rio se torna mais desfrutável. Cidade mulher? Mais que isso, cidade prostituta. Com seu corpo a dar prazer a outrem. O carioca é amante de sua cidade.
Por isso corremos para a rua. Correr para a praia? Não necessariamente. A praia é, com certeza, o destino considerado em primeiro lugar pelos cariocas, quando do chamado do sol. Ponto de convergência. A maior e mais democrática área de lazer da cidade. Lugar comum, porém. A praia e a frase. E como não me atraem os lugares-comuns, prefiro correr para os morros. Certa vez já expressei essa minha preferência afirmando que a natureza, para mim, é mais verde que azul. Ignorava, então, que os morros não são só verdes. Mas também azuis, pois estão dentro do céu. Assim como as praias não são só azuis, porque o mar é verde também. Digressiono.
Pródiga em praias, a Cidade é também pródiga em morros. Mas um, em particular, comprou camarote cativo no meu coração e de lá assiste ao desfile vida afora das minhas sentimentalidades. Por isso, quando me ouvires falar em correr para os morros, entenda correr para Santa Teresa. Quando saio para andar sem rumo pela cidade, esteja onde estiver, é para lá que as minhas pernas me levam, sem nem mesmo esperar uma ordem minha. Cavalos ensinados sabem para onde levar o coche.
Subo, então, suas ladeiras sinuosas, me deixando enganar por suas curvas, como tantas vezes já me deixei enganar por outras mais perigosas. Os sons da Cidade ficam para trás e o silêncio do caminho é interrompido somente por um ou outro carro que me ultrapassa apressadamente descendo ou subindo, e pela música que me acompanha. Com os olhos no horizonte acima de mim, vejo o reflexo do sol nos trilhos do bonde. E sinto a vida retornar ao seu ritmo certo, que é o ritmo lento e cadenciado da subida de uma ladeira, e não a correria cotidianamente praticada ao nível do mar. Um ritmo que permite a reflexão sobre a vida, e não que vivamos apenas, e que cheguemos ao fim do caminho ainda com fôlego. Permito-me, por vezes, pegar um atalho por uma de suas muitas escadas, apesar de não apreciá-las. As escadas, além de encurtar o caminho, exigem um esforço muito maior do que as ladeiras para serem galgadas. E, ao contrário das ladeiras, as escadas guardam um quê de objetividade pouco lírica. Elas têm um fim (em todos os sentidos) e te levam direto a ele. Ao contrário das ladeiras que, infinitas, são capazes de te levar onde você menos espera, a lugar algum, ou de volta ao ponto de partida.
Lá de cima, juntinho do azul infinito do céu e do verde vivo da vegetação, me distraio a contemplar a cidade. Vista daqui do alto, ela é ainda mais linda, minha amante. Faço, na verdade, como fazem todos os apaixonados. Quem nunca se afastou sorrateiramente da sua amada para contemplá-la em silêncio, de longe? Como que a tentar apreender de uma só vez, num só olhar, toda a sua beleza. É impossível, eu sei. É beleza demais para ser guardada em olhos humanos por mais que breves minutos. Mas não há pecado em querer o impossível. E quem assim procede pode até ser digno de pena, mas nunca de perdão.
E assim a tarde passa. Não uma tarde vazia, mas uma tarde de ócio. O que não são sinônimos, ao contrário do que podem pensar as mentes rasas. O ócio é o pré-requisito dos melhores verbos terminados em “ar” que se pode conjugar: filosofar, criar, amar... Não há poesia sem o ócio. E não há amor sem poesia. E no ócio ficamos até anoitecer, fazendo amor e poesia, os três: eu, o sol e a Cidade.



Outubro de 2003